Por Prof. Dr. Roman Konik
Doutor em filosofia, professor adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw (Polônia).
A verdade é bem diferente da ficção que se divulga sobre a Inquisição. Há necessidade de analisá-la com serenidade, com base na ciência histórica e dentro do contexto da época de sua existência. O Prof. Dr. Roman Konik, nascido em 1968, além de publicista e comentarista de fatos quotidianos de seu país, é doutor em filosofia, professor adjunto da cátedra de estética na Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw (Polônia). É autor do livro Em Defesa da Santa Inquisição. A obra suscitou muita polêmica, e apesar do boicote sofrido por parte de livrarias — devido à legenda negra que se criou em torno do tema, apontando os inquisidores como “carniceiros”, torturadores, etc. –– despertou bastante interesse, já tendo sido vendidos mais de 35 mil exemplares. Com a polêmica, o jovem professor vem sendo convidado para conferências em diversas cidades de seu país, a fim de expor sua visão objetiva e bem documentada sobre o assunto, oposta aos mitos criados por certa literatura liberal contra o Tribunal do Santo Ofício.
Na entrevista concedida ao Sr. Leonardo Przybysz, nosso correspondente em Cracóvia (Polônia), comprova-se como os fatos — alicerçados na realidade histórica, e que se tornaram patentes mediante rigorosas pesquisas — diferem inteiramente das fantasias criadas e das detrações anti-Inquisição, embora não se negue que tenha havido certos abusos cometidos por alguns poucos inquisidores.
Doutor em filosofia, professor adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw (Polônia).
A verdade é bem diferente da ficção que se divulga sobre a Inquisição. Há necessidade de analisá-la com serenidade, com base na ciência histórica e dentro do contexto da época de sua existência. O Prof. Dr. Roman Konik, nascido em 1968, além de publicista e comentarista de fatos quotidianos de seu país, é doutor em filosofia, professor adjunto da cátedra de estética na Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw (Polônia). É autor do livro Em Defesa da Santa Inquisição. A obra suscitou muita polêmica, e apesar do boicote sofrido por parte de livrarias — devido à legenda negra que se criou em torno do tema, apontando os inquisidores como “carniceiros”, torturadores, etc. –– despertou bastante interesse, já tendo sido vendidos mais de 35 mil exemplares. Com a polêmica, o jovem professor vem sendo convidado para conferências em diversas cidades de seu país, a fim de expor sua visão objetiva e bem documentada sobre o assunto, oposta aos mitos criados por certa literatura liberal contra o Tribunal do Santo Ofício.
Na entrevista concedida ao Sr. Leonardo Przybysz, nosso correspondente em Cracóvia (Polônia), comprova-se como os fatos — alicerçados na realidade histórica, e que se tornaram patentes mediante rigorosas pesquisas — diferem inteiramente das fantasias criadas e das detrações anti-Inquisição, embora não se negue que tenha havido certos abusos cometidos por alguns poucos inquisidores.
Catolicismo — Em seu livro Em defesa da Santa Inquisição, o Sr. explica que a Inquisição não era a responsável pela execução das penas de morte, mas sim os tribunais leigos. Não será esse ponto de vista semelhante às opiniões de alguns historiadores judeus, que dizem não ter sido o Sinédrio o responsável pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o Tribunal Romano?
Prof. Konik — Sempre que tocamos no assunto do funcionamento da Inquisição, precisamos considerá-la sob o prisma da época em que ela atuou. Na Idade Média, a Religião constituía a garantia e o fator de coesão do Estado. Sempre que tentamos delimitar o Direito civil e o eclesiástico, encontramos dificuldades. Os leitores das crônicas de Gall Anonim (monge beneditino que escreveu a história da Polônia desde o início até o século XII; não se conhece seu nome; alguns dizem que vinha da Gália, daí o nome Gall Anônimo) muitas vezes fazem a pergunta: quebrar os dentes publicamente com um pedaço de pau, devido à quebra ostensiva do jejum, constituía uma pena civil ou eclesiástica? Na verdade, era uma pena civil à qual a Igreja se opunha.
Na Idade Média, os problemas criminais, civis e religiosos se interpenetravam. Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos bandidos comuns que, surpreendidos pela polícia no ato de violação, de roubo, de assalto à mão armada, rapidamente inventavam uma motivação religiosa para explicar o seu procedimento. Por quê? Simplesmente para cair na esfera da justiça da Inquisição e não da justiça civil ou temporal. Pois a justiça inquisitorial garantia pelo menos uma investigação, em vez da pena de fogueira imediata, a qual — como a pena de morte ou o decepamento da mão — não foi absolutamente invenção dos inquisidores.
Lembremo-nos de que nesse período histórico aplicava-se a pena de morte até pela falsificação de dinheiro ou pela ofensa à majestade real. Analogamente aceitava-se o fato de que a ofensa dirigida a alguém superior ao rei, ou seja, a Deus, só poderia ser punida da mesma forma. Os hereges pertinazes, mais freqüentemente os heresiarcas (isto é, os autores de heresias) e que se recusavam a abandonar o erro eram tratados como rebelados comuns. Isso se compreende, considerando-se que a atuação de herejes como os cátaros destruía a ordem social.
Eles não aceitavam o funcionamento da sociedade civil e eclesiástica, incitavam à renúncia da medicina e à completa abstinência sexual, inclusive no casamento, ou ao ritual chamado endura (morte voluntária pela extenuação do organismo, ou morte pela fome). Promoviam o aborto, acreditando ser melhor uma criança não nascer neste "vale de lagrimas", e ir assim diretamente para o Céu. Grupos de hereges revoltosos atraíam os pobres para suas fileiras, sob a promessa de que, roubando aos ricos, contribuíam para criar uma igreja nova, na qual as chances seriam iguais para todos. Isso não era uma contravenção estritamente religiosa, razão pela qual muitas vezes, após o julgamento e definição do grau de heresia, os rebeldes eram entregues ao braço civil para que se procedesse ao devido processo penal que dizia respeito a questões criminais: roubo ou violação. Freqüentemente acabava em pena de morte, mas a responsabilidade dos inquisidores em relação ao direito era igual à de cada cidadão. Uma situação equivalente, hoje em dia, consistiria em a Igreja concluir de acordo com o Direito Canônico um processo de sacerdote por crime de pedofilia, e em seguida entregar o caso à Procuradoria para que concluísse a investigação e aplicasse a devida pena.A maior parte das heresias nascidas na Idade Média atingia sobretudo a justiça civil. Vale a pena lembrar que o tribunal inquisitorial, entregando o herege à autoridade civil, incluía uma carta recomendando prudência na decisão.
Catolicismo — Também em seu livro o Sr. aponta a criação de um quadro negativo da Inquisição através de livros (sobretudo O Nome da Rosa, de Umberto Eco), pinturas, filmes ou exposições. Realmente, muitos artistas que retrataram a Inquisição (por exemplo, Goya) não viveram na época de sua existência. Pode-se pois perguntar se é fidedigno o que apresentaram. O Sr. conhece artistas que viveram no tempo da Inquisição atuante, que a mostraram de modo fiel.
Prof. Konik — Na mente do homem de hoje, há uma idéia comum que considera o inquisidor como um velho monge encapuzado com inclinações sádicas, inflamado do desejo de autoridade. O melhor exemplo disso é a figura de Bernard Gui, inquisidor de Toledo, descrito pelo conhecido medievalista italiano Umberto Eco em seu livro O Nome da Rosa. Pior ainda é a imagem apresentada no filme realizado com base em tal obra. Bernard Gui, como figura histórica real, foi inquisidor de Toledo e durante 16 anos exerceu esse cargo. Julgou 913 pessoas, das quais apenas 42 ele entregou ao tribunal civil como perigosos rebeldes (reincidentes, pedófilos, criminosos), o que não significava absolutamente pena de morte para eles. Em muitos casos Gui indicava tratar-se de doença psíquica, suspeição de heresia, desistindo de interrogatórios. Segundo a visão preconceituosa dos protestantes, é certo que essas pessoas iriam para a fogueira, ao contrário da verdade histórica.
É importante registrar que escritores protestantes, pouco simpáticos à Inquisição, começaram a escrever a história dela de maneira desfavorável, apresentando-a deformada. Também nas expressões artísticas das épocas posteriores à medieval verificou-se um reflexo dessa visão caricatural. Mas basta analisar o mundo artístico medieval para observar quadros que apresentam São Domingos convertendo os hereges, São Bernardo de Claraval discutindo com eles, ou então pinturas de inquisidores-mártires morrendo nas mãos de hereges — por exemplo, o martírio de São Pedro de Verona; ou de São Pedro de Arbués, assassinado na catedral de Saragoça. Exemplo de ódio radical contra a Igreja e da manipulação a que me referi é um quadro no Museu Nacional de Budapeste, apresentando uma sala de torturas, intitulado no catálogo “Inquisição”. Só depois de muitos protestos de historiadores, mostrando que o quadro apresentava cena de tortura num tribunal civil, é que o título foi mudado para “Sala de torturas”.
Lembremo-nos de que foram as descrições caricaturais de Diderot, Voltaire e até Dostoiewski que formaram na mente do homem de hoje a visão da Inquisição como um espectro. Os historiadores poloneses também não ficaram atrás dos historiadores “progressistas”. Deparando diariamente com essa visão distorcida da Inquisição, o homem comum é inclinado a aceitá-la como verdadeira.
Catolicismo — O Sr. diz que os inquisidores eram pessoas simpáticas, esclarecidas. Mas tanto ouvimos falar deturpadamente sobre as inimagináveis e sádicas torturas...
Prof. Konik — Se isso fosse verdade, então por que tantos malfeitores esforçavam-se em demonstrar que suas infrações eram de natureza religiosa, para que dependessem de juízes-inquisidores? Certamente não era porque gostassem de ser torturados... Lembremo-nos de que nesse tempo os tribunais civis em geral aplicavam torturas como forma, por exemplo, de um acréscimo de castigo, que precedia a morte. Já nos tribunais inquisitoriais as torturas, quando aplicadas, o eram somente com o objetivo de obter informações muito importantes. Na legislação medieval a aplicação de torturas era geral, mas os tribunais inquisitoriais as adotaram de forma muito abrandada. Proibiam torturar mulheres grávidas, crianças ou pessoas idosas. Para aquela época, isso era considerado inovador, pois nos tribunais civis tais pessoas não eram excluídas da possibilidade de serem torturadas. Era proibido também torturar duas vezes a mesma pessoa. A aplicação de torturas devia ser decidida por aclamação de todos os juízes — como também do defensor do réu — e com a aprovação do bispo local e de um consultor independente. Ressalto que as torturas aplicadas pela Inquisição eram raras. Na França, onde se efetuava a luta contra a seita dos albigenses, durante 200 anos só três vezes decidiu-se aplicá-la. A tortura mais freqüente era privar o condenado de alimentação, ficando ele totalmente isolado.
Os tribunais da Inquisição foram os primeiros a garantir a defesa ex-ofício e o que hoje é praticado: a prisão domiciliar e a liberdade mediante caução. As informações obtidas através de torturas não podiam ser consideradas como prova e deviam ser confirmadas num período posterior de 24 horas.
Os inquisidores eram recrutados sobretudo entre os melhores religiosos, de alta formação e de fama ilibada. A idade mínima era 40 anos, devido à experiência de vida, e tendo em vista precaver-se contra decisões apressadas, próprias da juventude. Os inquisidores não podiam usar arma. Eram pessoas normais do povo, freqüentemente viajantes, intelectuais curiosos de conhecer o mundo. A autoridade do inquisidor era geral na sociedade. Após o assassinato de Pedro de Verona, um dos mais conhecidos inquisidores, a multidão bradou: santo súbito. Este fato está em clara contradição com a idéia que as pessoas hoje fazem sobre os representantes dessa “profissão”.
Também a carta dos bispos do Sínodo de Toledo causa surpresa, pedindo aos inquisidores que sejam moderados nos jogos e não fiquem até tardias horas nas praças.
Catolicismo — Será que a comparação que o Sr. faz em seu livro, das seitas heréticas com grupos comunistas, não constitui analogia um tanto exagerada?
Prof. Konik — Mas, de fato, não foi isso (ou seja, medidas de caráter comunista) que fizeram os irmãos dulcianianos (seita medieval, muito esquerdista, liderada por Dulcian, que atuou sobretudo na Itália), os quais lutaram para introduzir a comunidade de bens, e assim privar a todos da propriedade privada? Lembremo-nos de que a atuação dos hereges não era apenas na linha da persuasão, mas freqüentemente obrigavam as pessoas ricas a “distribuírem aos necessitados” seus bens; os quais, como sempre acontece nessas situações, eram imediatamente defraudados. A semelhança também existe na esfera da propaganda: tanto a esquerda moderna como os hereges de outrora empenhavam-se em introduzir a “justiça social”, utilizando chefes carismáticos para enganar a população.
É digno de nota que os movimentos heréticos nunca tentaram arregimentar membros da classe intelectual, procurando sempre apoio nas classes mais baixas, de pouca instrução. A semelhança entre os hereges medievais e a esquerda moderna é notória também pelo fato de que ambos os movimentos dirigem-se às pessoas numa linguagem que elas querem ouvir. Nas homilias dos hereges cátaros, nunca aparece o elemento de responsabilidade pessoal. Não está presente o Juízo Final, o Purgatório não existe, mas somente o Céu, e este é destinado a todos. Como no socialismo: a visão da vida na Terra sem que se assumam responsabilidades foi, é e será sempre algo que atrai.
Fonte: Revista Catolicismo, setembro de 2006.
Prof. Konik — Sempre que tocamos no assunto do funcionamento da Inquisição, precisamos considerá-la sob o prisma da época em que ela atuou. Na Idade Média, a Religião constituía a garantia e o fator de coesão do Estado. Sempre que tentamos delimitar o Direito civil e o eclesiástico, encontramos dificuldades. Os leitores das crônicas de Gall Anonim (monge beneditino que escreveu a história da Polônia desde o início até o século XII; não se conhece seu nome; alguns dizem que vinha da Gália, daí o nome Gall Anônimo) muitas vezes fazem a pergunta: quebrar os dentes publicamente com um pedaço de pau, devido à quebra ostensiva do jejum, constituía uma pena civil ou eclesiástica? Na verdade, era uma pena civil à qual a Igreja se opunha.
Na Idade Média, os problemas criminais, civis e religiosos se interpenetravam. Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos bandidos comuns que, surpreendidos pela polícia no ato de violação, de roubo, de assalto à mão armada, rapidamente inventavam uma motivação religiosa para explicar o seu procedimento. Por quê? Simplesmente para cair na esfera da justiça da Inquisição e não da justiça civil ou temporal. Pois a justiça inquisitorial garantia pelo menos uma investigação, em vez da pena de fogueira imediata, a qual — como a pena de morte ou o decepamento da mão — não foi absolutamente invenção dos inquisidores.
Lembremo-nos de que nesse período histórico aplicava-se a pena de morte até pela falsificação de dinheiro ou pela ofensa à majestade real. Analogamente aceitava-se o fato de que a ofensa dirigida a alguém superior ao rei, ou seja, a Deus, só poderia ser punida da mesma forma. Os hereges pertinazes, mais freqüentemente os heresiarcas (isto é, os autores de heresias) e que se recusavam a abandonar o erro eram tratados como rebelados comuns. Isso se compreende, considerando-se que a atuação de herejes como os cátaros destruía a ordem social.
Eles não aceitavam o funcionamento da sociedade civil e eclesiástica, incitavam à renúncia da medicina e à completa abstinência sexual, inclusive no casamento, ou ao ritual chamado endura (morte voluntária pela extenuação do organismo, ou morte pela fome). Promoviam o aborto, acreditando ser melhor uma criança não nascer neste "vale de lagrimas", e ir assim diretamente para o Céu. Grupos de hereges revoltosos atraíam os pobres para suas fileiras, sob a promessa de que, roubando aos ricos, contribuíam para criar uma igreja nova, na qual as chances seriam iguais para todos. Isso não era uma contravenção estritamente religiosa, razão pela qual muitas vezes, após o julgamento e definição do grau de heresia, os rebeldes eram entregues ao braço civil para que se procedesse ao devido processo penal que dizia respeito a questões criminais: roubo ou violação. Freqüentemente acabava em pena de morte, mas a responsabilidade dos inquisidores em relação ao direito era igual à de cada cidadão. Uma situação equivalente, hoje em dia, consistiria em a Igreja concluir de acordo com o Direito Canônico um processo de sacerdote por crime de pedofilia, e em seguida entregar o caso à Procuradoria para que concluísse a investigação e aplicasse a devida pena.A maior parte das heresias nascidas na Idade Média atingia sobretudo a justiça civil. Vale a pena lembrar que o tribunal inquisitorial, entregando o herege à autoridade civil, incluía uma carta recomendando prudência na decisão.
Catolicismo — Também em seu livro o Sr. aponta a criação de um quadro negativo da Inquisição através de livros (sobretudo O Nome da Rosa, de Umberto Eco), pinturas, filmes ou exposições. Realmente, muitos artistas que retrataram a Inquisição (por exemplo, Goya) não viveram na época de sua existência. Pode-se pois perguntar se é fidedigno o que apresentaram. O Sr. conhece artistas que viveram no tempo da Inquisição atuante, que a mostraram de modo fiel.
Prof. Konik — Na mente do homem de hoje, há uma idéia comum que considera o inquisidor como um velho monge encapuzado com inclinações sádicas, inflamado do desejo de autoridade. O melhor exemplo disso é a figura de Bernard Gui, inquisidor de Toledo, descrito pelo conhecido medievalista italiano Umberto Eco em seu livro O Nome da Rosa. Pior ainda é a imagem apresentada no filme realizado com base em tal obra. Bernard Gui, como figura histórica real, foi inquisidor de Toledo e durante 16 anos exerceu esse cargo. Julgou 913 pessoas, das quais apenas 42 ele entregou ao tribunal civil como perigosos rebeldes (reincidentes, pedófilos, criminosos), o que não significava absolutamente pena de morte para eles. Em muitos casos Gui indicava tratar-se de doença psíquica, suspeição de heresia, desistindo de interrogatórios. Segundo a visão preconceituosa dos protestantes, é certo que essas pessoas iriam para a fogueira, ao contrário da verdade histórica.
É importante registrar que escritores protestantes, pouco simpáticos à Inquisição, começaram a escrever a história dela de maneira desfavorável, apresentando-a deformada. Também nas expressões artísticas das épocas posteriores à medieval verificou-se um reflexo dessa visão caricatural. Mas basta analisar o mundo artístico medieval para observar quadros que apresentam São Domingos convertendo os hereges, São Bernardo de Claraval discutindo com eles, ou então pinturas de inquisidores-mártires morrendo nas mãos de hereges — por exemplo, o martírio de São Pedro de Verona; ou de São Pedro de Arbués, assassinado na catedral de Saragoça. Exemplo de ódio radical contra a Igreja e da manipulação a que me referi é um quadro no Museu Nacional de Budapeste, apresentando uma sala de torturas, intitulado no catálogo “Inquisição”. Só depois de muitos protestos de historiadores, mostrando que o quadro apresentava cena de tortura num tribunal civil, é que o título foi mudado para “Sala de torturas”.
Lembremo-nos de que foram as descrições caricaturais de Diderot, Voltaire e até Dostoiewski que formaram na mente do homem de hoje a visão da Inquisição como um espectro. Os historiadores poloneses também não ficaram atrás dos historiadores “progressistas”. Deparando diariamente com essa visão distorcida da Inquisição, o homem comum é inclinado a aceitá-la como verdadeira.
Catolicismo — O Sr. diz que os inquisidores eram pessoas simpáticas, esclarecidas. Mas tanto ouvimos falar deturpadamente sobre as inimagináveis e sádicas torturas...
Prof. Konik — Se isso fosse verdade, então por que tantos malfeitores esforçavam-se em demonstrar que suas infrações eram de natureza religiosa, para que dependessem de juízes-inquisidores? Certamente não era porque gostassem de ser torturados... Lembremo-nos de que nesse tempo os tribunais civis em geral aplicavam torturas como forma, por exemplo, de um acréscimo de castigo, que precedia a morte. Já nos tribunais inquisitoriais as torturas, quando aplicadas, o eram somente com o objetivo de obter informações muito importantes. Na legislação medieval a aplicação de torturas era geral, mas os tribunais inquisitoriais as adotaram de forma muito abrandada. Proibiam torturar mulheres grávidas, crianças ou pessoas idosas. Para aquela época, isso era considerado inovador, pois nos tribunais civis tais pessoas não eram excluídas da possibilidade de serem torturadas. Era proibido também torturar duas vezes a mesma pessoa. A aplicação de torturas devia ser decidida por aclamação de todos os juízes — como também do defensor do réu — e com a aprovação do bispo local e de um consultor independente. Ressalto que as torturas aplicadas pela Inquisição eram raras. Na França, onde se efetuava a luta contra a seita dos albigenses, durante 200 anos só três vezes decidiu-se aplicá-la. A tortura mais freqüente era privar o condenado de alimentação, ficando ele totalmente isolado.
Os tribunais da Inquisição foram os primeiros a garantir a defesa ex-ofício e o que hoje é praticado: a prisão domiciliar e a liberdade mediante caução. As informações obtidas através de torturas não podiam ser consideradas como prova e deviam ser confirmadas num período posterior de 24 horas.
Os inquisidores eram recrutados sobretudo entre os melhores religiosos, de alta formação e de fama ilibada. A idade mínima era 40 anos, devido à experiência de vida, e tendo em vista precaver-se contra decisões apressadas, próprias da juventude. Os inquisidores não podiam usar arma. Eram pessoas normais do povo, freqüentemente viajantes, intelectuais curiosos de conhecer o mundo. A autoridade do inquisidor era geral na sociedade. Após o assassinato de Pedro de Verona, um dos mais conhecidos inquisidores, a multidão bradou: santo súbito. Este fato está em clara contradição com a idéia que as pessoas hoje fazem sobre os representantes dessa “profissão”.
Também a carta dos bispos do Sínodo de Toledo causa surpresa, pedindo aos inquisidores que sejam moderados nos jogos e não fiquem até tardias horas nas praças.
Catolicismo — Será que a comparação que o Sr. faz em seu livro, das seitas heréticas com grupos comunistas, não constitui analogia um tanto exagerada?
Prof. Konik — Mas, de fato, não foi isso (ou seja, medidas de caráter comunista) que fizeram os irmãos dulcianianos (seita medieval, muito esquerdista, liderada por Dulcian, que atuou sobretudo na Itália), os quais lutaram para introduzir a comunidade de bens, e assim privar a todos da propriedade privada? Lembremo-nos de que a atuação dos hereges não era apenas na linha da persuasão, mas freqüentemente obrigavam as pessoas ricas a “distribuírem aos necessitados” seus bens; os quais, como sempre acontece nessas situações, eram imediatamente defraudados. A semelhança também existe na esfera da propaganda: tanto a esquerda moderna como os hereges de outrora empenhavam-se em introduzir a “justiça social”, utilizando chefes carismáticos para enganar a população.
É digno de nota que os movimentos heréticos nunca tentaram arregimentar membros da classe intelectual, procurando sempre apoio nas classes mais baixas, de pouca instrução. A semelhança entre os hereges medievais e a esquerda moderna é notória também pelo fato de que ambos os movimentos dirigem-se às pessoas numa linguagem que elas querem ouvir. Nas homilias dos hereges cátaros, nunca aparece o elemento de responsabilidade pessoal. Não está presente o Juízo Final, o Purgatório não existe, mas somente o Céu, e este é destinado a todos. Como no socialismo: a visão da vida na Terra sem que se assumam responsabilidades foi, é e será sempre algo que atrai.
Fonte: Revista Catolicismo, setembro de 2006.
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