PAPA SÃO SISTO - SÉCULO I
Duas cidades têm o privilégio de exercer, sobretudo
sobre um coração católico, um atrativo incomparável e de dar ao espírito
grandes esclarecimentos quando suas investigações o levam rumo à teologia e à
história: eu quero dizer Jerusalém e Roma. Elas são como os dois olhos
brilhantes do mundo nos quais se reflete o céu; elas são dois santuários
particularmente escolhidos sobre nossa terra e como os dois pólos do mundo
histórico; elas são os pontos de apoio misteriosos onde a misericórdia divina
depositou a alavanca que suspende o mundo e o fez sair da velha órbita da
servidão para conduzi-lo em uma via nova, a via do céu. São as duas cidades da
aliança, os dois palcos das maravilhas de Deus. Uma proclama a história da
Redenção; a outra resume a história da Igreja. Elas são como a mãe e a filha,
intimamente e inseparavelmente ligadas uma à outra. Sua fisionomia e sua
história levam o selo indelével deste parentesco. A colina eternamente
memorável de Jerusalém foi testemunha do sacrifício três vezes santo do Homem-Deus;
consagrada pelo sangue divino, ela tornou-se o altar da salvação. As colinas de
Roma viram o martírio de um milhão de membros ilustres do Cristo, e, pelas
torrentes de sangue que as inundaram e consagraram, elas se tornaram como o
altar-mor da Igreja universal. O corpo de Jesus Cristo foi, após o sacrifício
supremo, sepultado em uma escavação rochosa no pé do Gólgota. Os corpos
daqueles que deram a Deus o testemunho de seu sangue foram sepultados sob o
solo da cidade das sete colinas, nas rochas cavernosas das Catacumbas. O corpo
do Senhor repousou três dias na gruta silenciosa e ressuscitou após este
período. A Igreja romana, corpo místico do Cristo, se confiou durante três
séculos à discrição da necrópole subterrânea e se levantou em seguida para
fazer ondular sobre o universo o estandarte triunfal da cruz. Enfim, após a
ressurreição, cada uma dessas duas sepulturas permaneceu gloriosa e abençoada.
Os selos miraculosamente quebrados do Santo Sepulcro, em Jerusalém, a caverna
privada de seu tesouro e só contendendo o sudário dobrado, tornou-se o
testamento eterno e o testemunho sempre invencível do grande mistério da
Redenção. As Catacumbas reabertas de Roma, com seus tesouros de despojos santos
e de relíquias preciosas, monumentos de todo tipo, são um testemunho
irrefutável em favor da Igreja primitiva, um legado precioso para as gerações
mais distantes. Elas são de algum modo os arquivos do cristianismo, o berço da
história eclesiástica. Nas galerias e nos arcosolia, nas
paredes e nas abóbadas, se desenrolam em cores vivas e frescas os símbolos da
fé e do amor tais como os representavam na Igreja apostólica. Após vários anos de estudos especiais, e encorajados pelo concurso
benevolente do cavalheiro de Rossi, tão profundamente versado na arqueologia
das Catacumbas, tentaremos introduzir e guiar o leitor na Roma subterrânea.
Veremos que, se a Igreja tira desta mina tão fecunda o ouro das relíquias
preciosas do qual ela decora os altares do mundo inteiro, a erudição católica
não é menos exitosa ao extrair dai, felizmente, os diamantes dos quais ela
aperfeiçoa e enriquece a ciência da fé.
As Catacumbas em geral – Sua importância histórica
batismo Infantil
Consideraremos, em uma primeira
parte, certos dogmas cristãos que tem mais especialmente relação com a
finalidade das Catacumbas, e, em uma segunda parte, outros pontos particulares
da doutrina, que tiram desses monumentos uma confirmação radiante. O que
são as Catacumbas? Qual foi sua finalidade? Essas questões preliminares
necessitam de uma resposta curta. Transportai-vos, pelo pensamento, na
cidade eterna, em Roma, nos dias de seu antigo esplendor, no segundo ou no
terceiro século da era cristã. Ela é a dominadora orgulhosa do mundo, com seus
duzentos milhões de cidadãos, quase todos pagãos. Do meio de seu céu azul, o
sol atira sobre ela seus raios flamejantes e parece querer alourar esta
multidão de templos, de pórticos, de colunatas, de palácios, de basílicas, de
mausoléus, de termas, de teatros e jardins magníficos. Todos os tesouros da
terra, todas as maravilhas da arte parecem se encontrarem nessa bacia
gigantesca aonde vieram se derramar todos os despojos do mundo. Contudo,
esta superabundância de ouro e de mármore, esse luxo grandioso e arrebatador
são apenas um verniz brilhante sobre uma imensa tumba. Ainda que mestra do
mundo, a cidade é a escrava decaída, vergonhosa e desonrada da superstição e do
vício. O inimigo do gênero humano se encarnou de algum modo nela e aí reina,
como em uma cidadela inexpugnável, cercado tanto de vassalos quanto de estátuas
dos deuses sobre os templos e os terraços dos palácios. Roma, centro do poder
político que governa o universo, tornou-se o centro da depravação moral e de
todos os vícios. Ela atraía para si as forças vitais de todos os territórios,
os transformava em venenos e os reenviava assim transformados até as
extremidades da terra. Se a humanidade tivesse sido condenada a perecer, o
príncipe do mundo não poderia ter escolhido um quartel general mais favorável
para sua obra de destruição. Se, ao contrário, ela tivesse de ser salva, seria
aí também que a divina misericórdia deveria engajar a luta contra o mal. Ora, é
precisamente aí que ela se abre. No território de Roma, sob as verdes pradarias
do campo silencioso, trabalhavam misteriosamente, no fundo das alamedas subterrâneas,
algumas centenas de braços cheios de atividade e de energia, cujo alvião
formava, em um solo avermelhado, um imenso e inextricável labirinto de
galerias. Eram os soldados do Cristo que, empreendendo o cerco da metrópole do
paganismo, lhe faziam um cinto de catacumbas, como para apertá-la por um vasto
sistema de fortalezas. É nesses campos trinchados que eles se exercitavam e se
preparavam ao combate; é daí que eles partiam, animados por um santo entusiasmo,
para as lutas do martírio. Uma vez a vitória obtida e a palma colhida, eles
reconduziam como troféus, às Catacumbas, os corpos dos heróis cristãos.
Depositavam com eles, na mesma sepultura, as insignes e os instrumentos do
martírio, como eles tinham sepultado outrora os guerreiros com suas armas. Contudo,
cada gota de seu sangue era a semente de um novo exército de soldados cristãos,
até no dia em que o estandarte da cruz, plantado pelo imperador Constantino,
ondulou sobre o Capitólio e que Roma tornou-se o centro vivo de um mundo
renovado, o coração que derramou torrentes da fé e do amor de Deus em todas as
veias da humanidade.
Plano das Catacumbas
Eucaristia - SÉCULO I
Oferecemos uma idéia da
importância histórica das Catacumbas; tentamos descrevê-las. Os cemitérios
subterrâneos de Roma, que receberam o nome de Catacumbas apenas a partir do
século dezesseis, são exclusivamente de origem cristã. Sua extensão compreende
uma zona de duas milhas em torno da cidade, e forma assim uma imensa,
silenciosa e santa necrópole. Cavadas nas propriedades de algumas famílias
patrícias que tinham abraçado a fé, elas gozavam, sobretudo durante os dois
primeiros séculos, da proteção da lei romana, que declarava invioláveis os
lugares religiosos. Para melhor designá-las, lhes davam os nomes de seus
proprietários cristãos ou dos mártires ilustres que aí eram enterrados.
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Loculus, Catacumba de São Calixto
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Elas são no total de vinte e seis
(26), correspondendo aos vinte e seis títulos ou paróquias de Roma; e, se
acrescentarmos aí algumas catacumbas pequenas, posteriores a Constantino,
chegaremos a um total de quarenta, que formam uma rede subterrânea de ruas
sepulcrais. Constituídas regularmente e perpendicularmente em um terreno de
formação plutônica, resistente, (…), essas ruas se cruzam infinitamente e
formam, geralmente, séries de andares sobrepostos, que chegam algumas vezes até
cinco. Nessas alamedas, conhecidas ordinariamente sob o nome de galerias,
aplicaram, ao longo das paredes, desde o chão até o alto, cortes horizontais.
São os nichos sepulcrais, os loculi, nos quais,
semelhantes aos passageiros que se entregam ao sono embalados por balanços do
navio, repousam os mortos cristãos, frequentemente até quatorze colocados uns
sobre os outros, sem distinção de posição, idade nem de sexo. Cada polegar do
nicho, cada metro quadrado da parede é usado com economia; mas cada um, criança
ou adulto, tem sua tumba cavada na rocha, e onde ninguém tinha sido enterrado.
As galerias, entre uma altura de sete a quinze pés, são tão estreitas, que freqüentemente
uma pessoa basta para ocupar a largura. Mas seu comprimento é tamanho que, se
pudéssemos reuni-las todas juntas, extremo a extremo, teríamos perto de
trezentas léguas de caminho a percorrer, e passaríamos ao lado de quatro a seis
milhões tumbas.
Esse trabalho de escavação e de
corte das galerias sepulcrais e das loculi, assim como
dos cortes mais espaçosos das capelas, era confiado à uma corporação ou
confraria de verdadeiros imitadores de Tobias, aos fossores, coveiros,
que eram preparados para sua vocação por um tipo de ordenação ou de bênção
eclesiástica.
As
Catacumbas de Roma – Destinação e finalidade das Catacumbas
Cinco Santos - Igreja Primitiva
Esforcemo-nos, depois desta curta
descrição, em descobrir para qual fim estas Catacumbas foram cavadas. Sua
destinação original e primeira sai claramente do nome que elas levavam na
antiguidade cristã. Elas eram chamadas cemitérios, coemeterium, ou seja, lugar de descanso, dormitório.
Elas tinham então servido primitivamente de lugar de sepultura aos cristãos de
Roma. Tão logo eles consideraram seus corpos como os membros do Cristo, como os
templos do Espírito Santo e vasos de eleição, eles não quiseram nem queimá-los
sobre uma fogueira, segundo o costume pagão então em vigor, nem expô-los para
serem desonrados pelos infiéis. Ademais, como eles estavam destinados para
resplandecer um dia cheios de magnificência e de luz na glória divina, eles os deitavam como uma semente no campo abençoado; ou
ainda, segundo a palavra mais expressiva dos primeiros cristãos, eles os
depositavam aí, como se deposita, para conservá-lo, um tesouro em lugar seguro.
Estes não eram mortos, eram homens adormecidos: ademais, o lugar de sua
sepultura se chamava um dormitório, onde
eles descansam dos trabalhos da jornada, até que venha a aurora e que o som do
trompete os desperte.
Maria e o Menino Jesus no Colo
Transportemo-nos um instante em
um destes subterrâneos. Uma carroça atrelada a dois cavalos acaba de entrar sob
a abóbada escura de uma pedreira de areia, de uma arenária abandonada. É a carroça dos mortos,
auxiliar indispensável durante os dias tão difíceis da perseguição. Os fossores, revestidos com os hábitos de sua ordem,
esperam o recém chegado com impaciência, e com uma mão trémula, descarregam o
corpo. Este corpo não foi mergulhado no cal, para escondê-lo dos pagãos, como
acontecia algumas vezes. Os fiéis, vigias dos mortos, o pegaram, completamente
sangrento, no próprio lugar da execução, e se apressaram em levar seu espólio
precioso ao tesouro da Igreja. Um coveiro, já branqueado pela idade, precede e
ilumina os carregadores. Ele os conduz em um canto da arenária onde uma escada secreta abre-lhes o
caminho da necrópole cristã. Aí, o bispo e os fiéis saúdam, por cantos solenes,
o despojo do herói, e o cortejo fúnebre se coloca em marcha. Nestes corredores
silenciosos, ressoa, suave como o canto dos bem-aventurados, a salmodia divina,
e seus sons misteriosos repercutem através das galerias. As chamas carregadas
pelos acólitos, se refletindo sobre estas muralhas avermelhadas pelo tufo
litoide, formam milhares de estrelas que cintilam subitamente e se apagam
imediatamente, enquanto que os sepulcros, cujas filas se prolongam
indefinidamente de cada lado, formam com seus habitantes pacíficos uma cerca de
honra para o novo concidadão que faz aí sua entrada. Os tijolos amarelados e as
placas de mármore branco que fecham a entrada das tumbas, brilham sob os
reflexos móveis da luz, como distintivos de ouro e de prata que seriam
incrustados ou encaixados na púrpura. Eles parecem se movimentar! A luz os
torna expressivos; ela faz deles como emblemas transparentes, e mais de
uma inscrição comovente, mais de um símbolo cheio de frescor e de delicadeza,
executado sem arte pela mão inábil do coveiro, anuncia a paz do céu, a
esperança inabalável, a confiança jovial, e parece ser, por assim dizer, uma
resposta aos versículos salmodiados pelo coro que passa. Tudo, em torno destas
placas de mármore, parece selar no morteiro, como guirlandas de honra, sinais
expressivos da memória e da afeição imortais. Aqui, há uma moeda, ou uma
concha, ou um camafeu que atinge o olhar; ali, é uma pedra cintilante ou um
fragmento de cristal encaixado no ouro. Mais adiante, marcas de cera,
representando a forma da planta do pé e cobertas de divisas cristãs, emolduram a
fina tabuleta que cobre a tumba. Quando é um mártir que mora no loculus silencioso, a mais invejável das joias
assinala aí sua presença: um frasco de vidro, de argila ou de ónix, contendo o
sangue precioso do mártir, e na frente uma lâmpada acesa. O cortejo fúnebre já
percorreu várias galerias. Assim que ele penetra em uma nova alameda, uma
lâmpada, sentinela discreta que vigia sem ruído no fundo de seu nicho, parece
saudá-lo. Logo esta lâmpada é decorada com um ornamento emblemático; logo ela
toma a forma de uma pomba, de um peixe ou de um barco. Ela une alegremente sua
luz fraca com o brilho das velas.
Nesse meio tempo chegamos ao
espaço reservado ao defunto. Desta vez, não é uma simples abertura em uma
destas longas ruas sepulcrais. Para honrar o mártir, os fossores lhe prepararam uma grande escavação, um arcosolium. Isso é um tipo de sarcófago esculpido no
tufo e coroado por um nicho em abóbada rebaixada.
Eucaristia - Ultima Ceia
Os necróforos ou carregadores se
detém e depositam no solo seu precioso fardo. Como aquele de Jesus, este corpo
está embalsamado com aromas preciosos e envolvido em uma mortalha.
O serviço deposita em sua fronte
vitoriosa uma coroa de louros, e o pontífice conclui a bênção. Piedosos lábios
ainda cobrem de beijos o santo despojo; depois o introduzem na abertura
preparada. Ao lado, colocam um pequeno vaso cheio do sangue que foi derramado
em testemunho de Jesus Cristo, e uma urna de aromas, cujo odor suave, imagem do
perfume da santidade, perfuma a tumba e a cripta. Mas logo a tumba torna-se a
mesa eucarística; a pedra que fecha sua abertura serve de pedra de altar; sobre
ela o bispo celebra o sacrifício da nova aliança, sacrifício ofertado à glória
do Altíssimo, em honra do bem-aventurado que acaba de receber a coroa celeste.
Consagradas, sobretudo, para a
sepultura dos cristãos, que são irmãos e irmãs em Jesus Cristo, as Catacumbas
receberam ademais, pela força das coisas, outra destinação. Nos dias da
perseguição, elas tornaram-se a morada temporária do Papa, do clero e de alguns
leigos de distinção, particularmente designados pelo ódio dos tiranos. Elas
foram também o lugar de reunião dos fiéis para a celebração do culto.
Esta última destinação tornou
insuficientes as câmaras sepulcrais de algumas famílias e os arcosolia dos mártires. Eles fizeram então escavações
em forma de capelas mais ricamente decoradas, com um arcosoliumou um altar livre situado sobre um sarcófago.
Ao lado ou por trás encontrava-se a sé episcopal, e ao longo da parede um banco
de pedra para o clero. A credência consistia em um nicho feito no tufo ou em
suportes talhados em relevo. Ao coro, compartimento no qual ficavam os homens,
correspondia, regularmente, do outro lado da galeria, a capela das mulheres,
que tinha vista sobre o coro. Uma passagem, luminare, feita na
parte superior e dando acima da separação, levava a cada uma das duas naves a
luz e o ar constantemente renovado.
Algumas vezes encontramos um
terceiro espaço, sem ornamentação de nenhum tipo. Ele estava em comunicação com
o presbyterium por uma abertura destinada à transmissão
das palavras: é aí que se reuniam os penitentes e os catecúmenos. Nestas
criptas morou por um longo tempo toda uma série de papas desde São Pedro até
São Marcelo e Santo Eusébio. O santo papa Caio, sobrinho do cruel Diocleciano,
permaneceu aí oito anos inteiros. É aí que eles instruíam e batizavam os fiéis,
que eles ordenavam os padres e estabeleciam a disciplina eclesiástica. É daí
que eles governavam todo o rebanho do Cristo, daí que eles datavam suas bulas
pontificais e exerciam seu encargo pastoral e apostólico. É daí que eles
enviavam os fiéis, alimentados do pão dos fortes, para
o campo de batalha do martírio, e saíam, enfim, eles também, quando se tratava
de ir morrer por Jesus Cristo. A santidade inseparável das tumbas e o temor de
se expor aos perigos nos labirintos desconhecidos davam a estes refúgios
subterrâneos toda a segurança desejada contra os inimigos do nome cristão.
Assinalamos, não obstante, circunstâncias excepcionais nas quais esta necrópole
deixou de ser um asilo inviolável. Assim, Santo Emerenciano foi apedrejado em
uma cripta, São Cândido precipitado por um luminare. Em outro
momento, todo um bando de cristãos foi enterrado vivo perto da tumba dos santos
mártires Crisanto e Daria. Assim ainda, em 261, o santo papa Sisto II, celebrando
os santos mistérios nas Catacumbas, em presença de um grande número de fiéis,
foi morto com quatro diáconos. Pouco tempo antes, outro papa tivera o mesmo
destino. Era Santo Estevão I. Em virtude de uma ordem imperial, ele foi
arrastado ao templo de Marte. Ele escapou por milagre das mãos de seus
carrascos e se escondeu com seu clero nas Catacumbas de São Calisto. Por muito
tempo ele deu ao seu rebanho, já considerável, todos os cuidados de um bom
pastor. Uma tardinha – depois de um dia quente do mês de agosto – os fiéis
foram convocados, como de costume, para uma assembléia santa. Aquele que, neste
momento, estivesse caminhando na via Ápia, fora dos muros, teria podido ver, de
tempo em outro, ou sozinhas ou em pequenos grupos, sombras caminhar rapidamente,
resvalar-se e desaparecer atrás dos murros de uma vila solitária. Eram os
cristãos que, para o ofício noturno, se apressavam em penetrar no cemitério de
Lucina, ramificação das Catacumbas de Calisto. A senha dada, a porta se abria
diante deles, e eles percorriam silenciosamente as alamedas subterrâneas
fracamente iluminadas. Ei-los chegando. As mulheres, completamente
cobertas de véu, se voltam para a esquerda, dando uma saudação
silenciosa às viúvas consagradas a Deus. Os homens penetram na capela da direita,
da qual um clérigo guarda a entrada. Os arcos e as muralhas estão ornados com
pinturas simbólicas, nas quais a luz suave das lâmpadas empresta um charme todo
particular. Tudo respira a piedade e o recolhimento. No fundo, sobre o túmulo
de um mártir, se levanta um altar simples, onde o diácono prepara os vasos
sagrados. Os fiéis que chegam depositam no nicho mural sua oferta de pão e de
vinho e esperam em pé que a ação santa comece, enquanto
que o clero se coloca no presbyterium. A cena
se concentra, sobretudo, na pessoa venerável de Santo Estevão, sentado sobre
uma sé de mármore. Seu olhar doce de pai repousa com amor sobre seu pequeno
rebanho. Ele se levanta. De sua boca de profeta saem ondas carregadas de
palavras de paz e de encorajamento, que penetram os corações dos fiéis e
produzem uma emoção poderosa na assembléia. O pontífice sobe então ao altar, e,
virado para o povo, ele começa os santos mistérios. Que luminosidade
sobrenatural ilumina sua face quando ele eleva as mãos! Que chamas maravilhosas
jorram de seus olhos quando ele contempla o Cordeiro de Deus estendido diante
dele! É isso o antegozo da felicidade próxima do qual o pressentimento apanhava
o nobre ancião? Escutem… ouvimos um tinido de armas… a luz das tochas já
são avistadas na galeria vizinha; uma tropa se aproxima;… são os temíveis
servos de César. O respiradouro ou luminare lhes
conduziu o som dos cânticos e lhes revelou, por isso, o asilo dos cristãos.
Eles abrem violentamente uma passagem. Mas um poder sobre-humano parece
cravá-los na soleira da cripta sagrada. O Papa termina o sacrifício, reza pelos
perseguidores, e os soldados só saem de seu torpor miraculoso quando Estevão
volta para seu trono. Eis então que a tropa se precipita sobre ele, a espada
nua, e faz uma vítima gloriosa daquele que agora mesmo oferecia o sacrifício.
Eis nossa estrada aplainada. Ela nos conduziu ao fim que nos propomos ao
escrever estas páginas. As Catacumbas, pilhadas e devastadas durante a invasão
dos bárbaros, mais tarde cobertas de terra em conseqüência de desabamentos,
caíram completamente no esquecimento e foram uma região desconhecida até o
tempo (1593) de Antonio Bosio, de Malte. Com este sábio, o Cristóvão Colombo da
Roma subterrânea, começaram as escavações sérias, destinadas a despertar
o interesse que se liga naturalmente às Catacumbas, e que forneceram as bases
da ciência da qual elas são objeto. Mas é para nosso século, e, sobretudo, no
reinado glorioso de Pio IX, que estava reservada a glória de dar a estas pesquisas
uma impulsão cujos resultados ultrapassam as esperanças mais ousadas. Pio IX,
este outro Dâmaso, realizou, durante quase vinte anos, e ao preço dos mais
nobres sacrifícios, escavações que permitiram ao ilustre de Rossi publicar, em
obras doravante clássicas, uma profusão de descobertas extremamente
interessantes e de construir o edifício científico mais completo com a ajuda
dos materiais conquistados. É somente após a conclusão destas obras que veremos
dele o prêmio imenso para todos os ramos da ciência cristã. Esperamos, não
obstante, pela análise dos resultados já adquiridos, poder contribuir, de nossa
débil parte, com a apologética do catolicismo.
As Catacumbas de Roma – O Culto dos Santos
Cristo, Pedro e Paulo
Os monumentos que possibilitarão
que façamos uma idéia exata da Igreja primitiva são os monumentos fúnebres.
Esta circunstância vai determinar
a direção de nossas pesquisas. Estas pesquisas estarão naturalmente
circunscritas pelo dogma que tem maior relação com a destinação das
Catacumbas, a saber, a comunhão dos santos, ou seja, a Igreja triunfante, a Igreja padecente e
a Igreja militante.
As almas dos mortos que morreram
na graça divina estão, segundo o ensino da Igreja católica, juntas de Deus; sua
morada foi estabelecida na paz do céu; elas gozam da glória e da felicidade
eternas. Os túmulos das Catacumbas nos oferecem os mesmos ensinos? Iremos interrogá-los,
restaurar as inscrições sepulcrais e a iconografia dos três primeiros séculos,
que poderá vir em nosso socorro. Como o nosso espaço é curto, faremos apenas as
citações que se justificam por sua importância dogmática.
Percorramos então os seguintes epitáfios:
“Prima, você vive na glória de Deus e na paz de N.S.J.C. VIVIS IN GLORIA
DEI ET IN PACE”.
“Cheio de graça e de inocência, Severiano repousa aqui no sono da paz;
sua alma foi recebida na luz do Senhor. IN LVCE DOMINI SVSCEPTVS”.
“À merecedora
Saxonia: ela repousa em paz na casa eterna de Deus”.
“Lourenço nasceu
para a eternidade com a idade de vinte anos; ele descansa em paz. NATVS EST IN
ETERNVM”.
“Ursina – Agape –
Alogia – Felicíssima – Fortunada, etc.., vivem na paz – em Deus – sempre – eternamente”.
“Hermaniscus, minha
luz, vives em nosso Deus e Senhor J.C.”.
“Marciano, neófito,
os céus estão abertos para ti, tu viverás na paz. CELI. TIBI. PATENT. BIBES.
IN. PACE”.
Enfim:
“Alexandre não
morreu; mas ele vive além dos astros; após uma brevíssima vida, ele brilha no
céu. IN COELO CORVSCAT”.
Assim, aqueles que dormiram na paz de Deus, os
justos repatriados, vivem eternamente. Eles foram admitidos na plenitude da luz
de Deus, na casa do Senhor, na glória do Cristo. Eles nasceram para a
eternidade; os céus se abriram diante deles; eles brilham aí com uma
luminosidade parecida àquela dos astros. Eis a melodia ao mesmo tempo doce e
forte que escapa, com um perfeito acordo, do meio dos túmulos subterrâneos, e
que traz a consolação nos corações daqueles que esperam ainda o fim de seu
exílio. Que protestação solene não há nesta alegre e triunfante harmonia, nesta
santa confiança da Igreja apostólica, contra estas opiniões lamentáveis e pretensamente
primitivas do século XVII, que não querem saber de nada da Igreja triunfante,
que só admitem a entrada no céu para Jesus Cristo, e que declaram que é
temerário examinar se as almas dos justos estão na felicidade; que condenam
mesmo os mortos a uma espécie de dormição invencível da inteligência e da
vontade, a um exílio de vários milhares de anos no vestíbulo do céu, onde eles
esperam até o julgamento último a felicidade prometida!
A fé católica não se limita a esta doutrina
consoladora que abre o céu às almas dos justos. Ela admite também entre o mundo
terreno e o outro mundo, entre a Igreja militante e a Igreja triunfante, uma
troca de relações. Todos os homens resgatados são membros de um único corpo em
Jesus Cristo, formam uma sociedade, uma família imensa, unida pelo laço da
caridade. Esta união espiritual ocorre por meio da oração. Os bem-aventurados
nos prestam o socorro de sua intercessão e de sua assistência; do nosso lado,
nós lhes pedimos este socorro na veneração e na afeição.
Festa do Ágape
Tal é a doutrina da Comunhão dos santos. Examinemos
se ela se revela nas Catacumbas. Aqui, o olhar encontra, sobretudo, acima
dos arcosolia, um grande número de imagens de mártires ou
de fiéis mortos. Elas estão freqüentemente cercadas de símbolos do paraíso,
flores, aves, palmas, e sempre na atitude da oração. Estes braços elevados,
esta relação cheia de fervor diz em demasia que, lá no alto, os eleitos não são
simples espectadores que se contentam em gozar, mas fiéis associados de seus
irmãos ainda em luta sobre a terra.
E esta fé, que expressão poderosa não encontra nas
inscrições!
“Sutius, reze por
nós, afim que sejamos salvos. PETE PRO NOS (sic) VT SALVI SIMVS”.
“Augenda, vive no
Senhor e intercede por nós. EPΩTA”.
“Anatolius, ore por
nós. EYXOY”.
“Filho, que teu
espírito descanse em Deus; interceda por tua irmã. PETAS”.
“Matronata Matrona,
ore por teus pais Ela viveu um ano e cinquenta e dois dias. PETE”.
“Atticus, teu
espírito vive no Bem: implore por teus pais”.
“Joviano, viva em
Deus e seja nosso intercessor”.
“Sabatius, doce
coração, ore e implore por teus irmãos e teus companheiros. PETE ET ROGA”.
“Aqui descansa
Ancilladei. Ore pelo único filho que te sobreviveu, porque tua morada está na
paz e na felicidade eternas”.
“À minha digníssima
filha adotiva Felicidade, que viveu trinta e seis anos”. “Dignai-se em
orar por teu esposo Celsiniano”.
“Gentiano, o fiel, em
paz. Ele viveu 21 anos… em tuas orações interceda por nós, porque sabemos que
está em J.C.”.
Enfim, para
concluir a série dos exemplos que citamos:
“À nossa dulcíssima
e trabalhadora mãe Catianilla: que ela reze por nós EYXOITO”.
É assim que os olhos e o coração dos sobreviventes
atravessam o sepulcro e penetram até ao céu. É assim que o olhar e o amor
procuram e encontram os eleitos, os assaltam com orações ferventes, lhes fazem
participantes de suas penas com uma confiança infantil e lhes fazem piedosas
recomendações. Não está aí a verdadeiro espírito católico na plenitude da
caridade e na infalibilidade da certeza?
Mas, dirão alguns, estas invocações piedosas, estas
orações dirigidas aos santos, não são, talvez, apenas homenagens privadas, que
não supõem nem determinam um culto público, oficial, litúrgico?
A isto responderemos: A partir do momento em que se
trata de uma prática litúrgica, relativa ao culto dos santos, trata-se de um
princípio católico que não é legado ao arbítrio individual; não obstante, não
faltam monumentos que testemunham as homenagens dadas pela Igreja aos
bem-aventurados. Há nas Catacumbas dois tipos de inscrições que tem feição com
o culto, ambas caracterizadas liturgicamente pela expressão ainda em uso: Em nome
de… IN NOMINE.
Elas compreendem: 1º votos suplicativos em nome de
Deus, do Cristo ou de Deus Cristo. Por exemplo:
“Zózimo, vive em
nome do Cristo”.
“À Selia Victorina,
que descansa na paz em nome do Cristo”.
Nestes casos, a invocação se dirige diretamente a
Deus, único adorável, único onipotente, único dispensador das graças. Mas há
também em segundo outras invocações em nome de um santo; e então a oração se
dirige indiretamente a Deus, diretamente ao poder de intercessão do santo. Um
túmulo, entre outros, fala assim:
“Rufa, viverá na
paz do Cristo, em nome de São Pedro”.
Ou seja, por meio de sua intercessão. Sobre um
cálice descoberto nas Catacumbas, se lê esta inscrição em letras douradas:
“Vito, vive em nome de Lourenço”; em outro, no mesmo sentido, se lê: “Eliano,
vive em Jesus Cristo e São Lourenço”, ou seja, vive na graça de Jesus Cristo,
pela intercessão de São Lourenço.
O culto público dado aos santos está doravante
provado pelo fato incontestável que davam aos mártires mais ilustres, por um
tipo de canonização, títulos honoríficos em uso na Igreja, por
exemplo: “Senhor, Poderoso intercessor diante do trono de Deus, DOMINVS,
DOMNVS ou simplesmente D.”
A partir do século III já se observa o título de
Santo (dominus), Sanctus. É assim que encontramos saudações no gênero destas
aqui: “Senhor Pedro, Paulo, Estevão, Sisto, etc.; Senhora, Domina Basila”,
etc.. Mais tarde lemos: “Ao santo mártir Máximo”; “Ao Pai onipotente, ao seu
Cristo e aos santos mártires Taurinus e Herculanus, eternas ações de graças da
parte de Nevius, Diaristus e Constantino”.
Não pretendemos acumular as provas epigráficas, mas
buscar a luz ainda em outras partes, nas pinturas e nas imagens.
Cenas Bíblicas:
Mulher com Fluxo de Sangue
Sacrifício de Isaac
Profeta Jonas
Os Três homens da Fornalha
Ressurreição de Lázaro
Suzana Entre os Dois Anciôes
Fonte:
Dom Maurus Wolter. Les Catacombes de Rome et la
doctrine catholique. Paris, G. Téqui, 1872.
Tradução:
Robson Carvalho
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