Há 900 anos, aurora radiosa das Cruzadas
Naquele mês de novembro de
1095, uma multidão afluía, de diversas partes da Europa, para a
cidade de Clermont-Ferrand, na França: centenas de arcebispos e bispos, cerca
de quatro mil eclesiásticos e dezenas de milhares de leigos. O Bem-aventurado
Papa Urbano II vinha de convocar um Concílio em que se iria decidir, entre
outros assuntos, o destino da Terra Santa, de há muito em poder dos infiéis.
Com efeito, os seguidores de Maomé, desde o fim do século IX, tornaram-se senhores do Egito, Síria e Palestina, e os peregrinos, que do mundo inteiro se dirigiam a Jerusalém, assistiam desolados ao triste espetáculo. Os Lugares Santos profanados e o estandarte do Crescente -- substituindo-se à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo -- flutuando sobre a cúpula da igreja da Ressurreição, transformada em mesquita.
Aproximadamente dois séculos se passaram, no transcorrer dos quais o Ocidente cristão suportou pacientemente tão doloroso estado de coisas. Foi então que hordas de bárbaros tártaros, extremamente belicosos e agressivos, iriam modificar inteiramente tal situação. Entre esses asiáticos destacaram-se os turcos, que tinham dominado a Pérsia e abraçado a religião de Maomé, chegando ao pináculo de seu poderio sob a dinastia dos seljúcidas. Incomparáveis na arte de cavalgar e no manejo das armas, passaram a espalhar o terror por toda a região.
Tão logo ocuparam os Lugares Santos, moveram atroz perseguição aos cristãos do Oriente e aos peregrinos, estes últimos sistematicamente interceptados, saqueados e chacinados nos caminhos para Jerusalém. Ao mesmo tempo buscavam conquistar o Império Bizantino, como meio para atirarem-se sobre a Europa ocidental.
Continuamente chegavam ao Trono de São Pedro, então ocupado por São Gregório VII, insistentes pedidos de intervenção militar no Oriente.
Condoído pela tragédia que se abatera sobre a Cristandade, o grande pontífice planejou ir, ele próprio, à frente de um exército cristão defender a liberdade dos peregrinos de venerar os Santos Lugares e tolher o passo à ofensiva islâmica sobre o Ocidente. Entretanto, dificuldades políticas com o Sacro Império Romano Alemão o impediram de realizar tão acalentado intento.
Coube ao Bem-aventurado Urbano II, sucessor de São Gregório VII e igualmente vinculado à reforma empreendida pela abadia de Cluny, a glória da convocação da Cruzada.
Nascimento de um grande ideal
O Concílio de Clermont-Ferrand, aberto em 17 de novembro de 1095, ocupou-se antes de tudo em aprimorar a disciplina eclesiástica e combater os maus costumes, bem como as guerras entre particulares, então muito freqüentes.
Para esse efeito o Concílio renovou a chamada trégua de Deus, que punha vigorosos limites às lutas privadas como também às guerras entre famílias. Com isso Urbano II preparava aqueles corações ainda rudes para neles fazer raiar a mais bela página da história da Cristandade: o ideal de cruzada. Isso teve lugar durante a décima sessão do Concílio na grande praça de Clermont, onde incontável multidão se reunia para ouvir a voz inspirada do Vigário de Cristo. Urbano II subiu a uma alta tribuna, e com voz potente conclamou os cristãos, especialmente os franceses, a abraçarem a causa da libertação dos lugares santos.
"Ai de vós, meus filhos e meus irmãos -- disse o Papa -- que vivemos nestes dias de calamidades! Viemos então a este século reprovado pelo Céu, para ver a desolação da cidade santa e para vivermos em paz, quando ela está entregue nas mãos de seus inimigos?"
As palavras de fogo do intrépido Pontífice, a multidão, cheia de zelo e entusiasmo pela glória de Deus, bradava em uníssono: Deus vult, ou seja, Deus o quer.
"Que as palavras `Deus o quer' sejam o vosso brado de guerra" -- respondeu Urbano II. Em seguida, de joelhos em terra, a multidão recebia -- para aquela situação extraordinária -- a absolvição geral, e algumas notáveis personalidades ali presentes fizeram prontamente o juramento de lutar na Terra Santa. Como símbolo de tal juramento, uma cruz vermelha de tecido era afixada sobre as próprias roupas. Daí terem tomado o nome de cruzados.
O primeiro a receber a cruz, o fez das mãos de Urbano II, com pedaços de suas próprias vestes episcopais: foi o Bispo de Puy, Ademar de Monteuil, que dirigiu a primeira Cruzada, em nome do Papa, estando este impossibilitado de fazê-lo pessoalmente, como era anseio geral de toda a Cristandade.
Nove Cruzadas se sucederam entre os séculos XI e XIII, das quais a primeira é a mais importante. Nela sobressai a figura de Godofredo de Bouillon, que logrou estabelecer no Oriente, ainda que efemeramente, o Reino Latino de Jerusalém, o principado de Antioquia e os condados de Edessa e de Trípoli.
Aclamado rei de Jerusalém, Godofredo de Bouillon recusou a coroa que lhe era oferecida, ponderando que não podia cingir com ouro sua fronte na mesma cidade onde Nosso Senhor Jesus Cristo havia sido coroado de espinhos.
À frente da sétima e oitava Cruzadas brilhou a personalidade impar de santidade, prudência, coragem e simplicidade de São Luís IX, rei de França, que marcou a História como modelo de rei, de cruzado e de Santo.
Cruzada: expressão de sublime heroísmo religioso
O gesto heróico do Papa Urbano II, convocando a Cruzada, a 27 de novembro de 1095, foi um dos mais importantes, senão o mais importante de seu pontificado. Por certo terá sido um fator determinante na elevação desse grande Pontífice à honra dos altares, quando no ano de 1881 o Papa Leão XIII o proclamou Bem-aventurado.
A primeira Cruzada teve as assinaladíssimas conseqüências que a historiografia insuspeita não tem deixado de exaltar. Mas ao mesmo tempo ela abriu a gloriosa era das Cruzadas, nas quais a Santa Igreja e a Cristandade lutaram em atitude corajosa e nobremente defensiva contra os inimigos da Fé, em três áreas distintas: contra os mouros sarracenos e outros seguidores de Maomé; contra hordas de bárbaros pagãos que ultrapassavam o Reno e o Danúbio; e contra os hereges albigenses, que ameaçavam internamente a Cristandade.
Nessas santas lutas em defesa da Fé, os cruzados, filhos característicos da Igreja militante, salvaram-na de perigos sem conta, e defenderam as terras da Europa ocidental contra muçulmanos, pagãos e hereges. Com o que ficaram defendidas as liberdades indispensáveis para que as nações pacíficas da Europa cristã e ocidental pudessem constituir as maravilhas de fé, arte e cultura que, até hoje, todos os povos da Terra afluem incessantemente para admirar.
A palavra cruzada ficou assim incorporada para todo o sempre ao vocabulário católico, como expressão de sublime heroísmo religioso.
É bem verdade, infelizmente, que as misérias humanas -- presentes até mesmo em excelentes e até santas instituições -- se fizeram notar, e por vezes de modo muito agudo, na história das Cruzadas. Paixões, ambições pessoais, rivalidades mesquinhas, invejas e até traições deixaram indelével cicatriz numa tão louvável instituição nascida sob o influxo da Santa Igreja. Foram tais misérias, com certeza, uma das mais atuantes e decisivas causas dos numerosos reveses e infortúnios sofridos pelas Cruzadas.
Mas se tal é verdade, também o é que, transcorrendo os séculos, aquilo que as Cruzadas tiveram de contingente e humano se eclipsou aos olhos da História para dar lugar à sua verdadeira visualização, isto é, o que elas tiveram de perene e de sobrenatural.
Com efeito, o ideal de cruzado completou o perfil do cavaleiro e marcou a História com um padrão de perfeição cristã que resistiu e vem resistindo a todas as investidas adversárias, a todos os vendavais morais e culturais dos séculos de demolição que se sucederam desde então. Ainda hoje, apesar do estado de vulgaridade e decadência moral em que vão caindo as sociedades modernas, qualificar alguém de um perfeito cruzado é fazer-lhe um dos mais altos e honrosos elogios.
Foi ainda o espírito de Cruzada que, três séculos após São Luís IX, moveu outro Papa, São Pio V, a convocar nova expedição militar, cujo milagroso desfecho se deu em 1571, na célebre baía grega de Lepanto. A armada cristã, sob o comando de Dom João D'Áustria, assistida por celeste proteção, derrotou a frota numericamente muito superior dos turcos otomanos, salvando a Cristandade do domínio muçulmano.
Semente do mesmo ideal das Cruzadas veio germinar em fins do século XVII, por iniciativa de um Papa -- também este elevado às honras dos altares -- o Bem-aventurado Inocêncio XI. Este Sumo Pontífice conclamou o heróico rei da Polônia, João Sobieski, a unir-se às tropas imperiais comandadas pelo Duque Carlos de Lorena, para a defesa de Viena ameaçada pelo Sultão de Constantinopla Maomé IV. Desta forma salvou Viena e o Império, e uma vez mais o Ocidente cristão, da investida islâmica.
Foi justamente em ação de graças por tão memorável vitória que o Bem-aventurado Inocêncio XI instituiu a belíssima festa do Santo Nome de Maria.
Em duzentos anos, nove cruzadas
1095 - O Papa Urbano II convoca os barões da Cristandade para partir em direção a Jerusalém, a fim de libertar o Santo Sepulcro e livrar os cristãos do Oriente, que haviam tombado sob o jugo muçulmano.
1096-1099 - Primeira Cruzada: três anos são utilizados para cercar e tomar Nicéia, Antioquia e, por fim, Jerusalém.
1147-1149 - Segunda Cruzada, a pedido do Papa Eugênio III (motivado pela queda de Edessa) e pregada na França por São Bernardo. Diante de Damasco, a derrota de Luís VII, rei da França, e Conrado III, imperador alemão.
1189-1192 - Terceira Cruzada, empreendida por causa da queda de Jerusalém em poder de Saladino. O rei da França Felipe Augusto, o imperador alemão Frederico Barbaroxa e o rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão tornam-se cruzados. Tomada da ilha de Chipre e de Acre, no litoral da Palestina. Acordo com Saladino, que concede livre acesso aos Lugares Santos. Criação do reino cristão da Pequena Armênia.
1202-1204 - Quarta Cruzada, convocada pelo Papa Inocêncio III. Objetivo inicial: o Egito. Os cruzados terminaram tomando Constantinopla, onde Balduíno de Flandres instala o império latino, de curta duração.
1217-1221 - Cruzada das crianças: milhares de crianças e jovens morrem a caminho de Jerusalém. Quinta Cruzada, sob novo apelo de Inocêncio III: os cruzados tomam e depois perdem Damieta, no Egito.
1229 - Sexta Cruzada: o imperador alemão Frederico II negocia com o sultão do Egito o livre acesso a Jerusalém, Belém e Nazaré.
1248-1254 - Sétima Cruzada - Jerusalém cai em 1244, pela segunda vez, em mãos dos muçulmanos. São Luís IX empreende a conquista do Egito e conquista Damieta, que depois devolve, ao ser derrotado e tornado cativo.
1270 - Oitava Cruzada - São Luís IX morre diante de Túnis, norte da África.
1291 - Nona e última Cruzada - Tenta infrutiferamente levantar o cerco de Acre. Com o abandono das duas últimas fortalezas da Ordem dos Templários na Palestina e ao norte de Beirute, os Estados latinos da Terra Santa são extintos.
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Pax Domini!
ResponderExcluirPoderia citar as fontes ou a bibliografia desta postagem? Estou intensificando minhas pesquisas sobre as Cruzadas, e me seria útil.
Henrique Sebastião