São Cipriano de Cartago nasceu entre 200 e 210 dC;
converteu-se ao Cristianismo em 246 aos 35 anos de idade, recebendo o batismo; elevado a bispo em
249, teve sua atividade pastoral interrompida em 250 em virtude da violenta
perseguição desencadeada pelo imperador Décio. Presidiu 3 concílios regionais
em Cartago, entre os anos 251 e 256. Foi decapitado a 14 de setembro de 258,
durante a perseguição de Valeriano. Deixou diversos escritos, sobretudo cartas, que constituem uma preciosa coleção documental sobre fé e culto. Contribuiu
para a criação do latim cristão. Um dos discursos de São Cipriano diz:
"Cristo edifica a Igreja sobre Pedro. Encarrega-o de apascentar-lhe as
ovelhas. A Pedro é entregue o primado para que seja uma Igreja e uma
cátedra de Cristo. Quem abandona a cátedra de Pedro, sobre a qual foi
fundada a Igreja, não pode pensar em pertencer à Igreja de Cristo" (De
un. Eccl. cap. IV), e: "Pedro é o vértice, o chefe dos Apóstolos" (I
Concílio de Nicéia). Ele foi um dos biografados por São Jerônimo em De
Viris Illustribus, (cap. 67)
A obra "A Unidade da Igreja Católica" (De
Ecclesiae Unitate), deve ter sido composta durante o concílio cartaginês de
maio de 251. Nela, Cipriano impugna o cisma de Novaciano, em Roma, e, ao mesmo
tempo, o de Felicíssimo, em Cartago. Acentua, incute e demonstra o dever de
todo cristão de perseverar, para a salvação de sua alma, na Igreja Católica,
isto é, em união com um legítimo bispo católico. Com a finalidade de combater o
cisma de Novaciano, enviou logo sua obra a Roma.
Esta obra é de leitura obrigatória para todos os
cismáticos e hereges de plantão, para que reconheçam a marca fundamental da
verdadeira Igreja de Cristo, isto é, a Unidade, pois "todo
reino dividido contra si mesmo ficará deserto; e a casa dividida contra si
mesma cairá" (Luc. 11,17).
Inicio do Tratado
"A Unidade da Igreja Católica" (De Ecclesiae Unitate)
"A Unidade da Igreja Católica" (De Ecclesiae Unitate)
I - VIGIAI: O INIMIGO VEM
DISFARÇADO
1.
"Vós sois o sal da terra" (Mt 5,3), diz o Senhor, e ainda nos
recomenda que seijamos simples pela inocência e prudentes na simplicidade [Mt
10,16]. Nada pois é mais importante para nós, irmãos diletíssimos, quanto
vigiar com todo o cuidado para descobrir logo e, ao mesmo tempo, compreender e
evitar as ciladas do inimigo traiçoeiro. Sem isso, embora sejamos revestidos de
Cristo [Rom 13,14; Gál 3,27], que é a Sabedoria de Deus Pai [1Cor 1,24], nos
mostraríamos menos sábios na defesa da salvação.
2.
De fato, não devemos temer só a perseguição e os vários ataques que se
desencadeiam abertamente para arruinar e abater os servos de Deus. Quando o
perigo é manifesto, a cautela é mais fácil. O nosso espírito está mais pronto
para lutar contra um adversário abertamente declarado. É mais necessário ter
medo e guardar-nos do inimigo que penetra às escondidas, e se vai insinuando
oculta e tortuosamente com falsas imagens de paz. Bem lhe convém o nome de
serpente! Essa foi sempre a sua astúcia, esse foi sempre o tenebroso e pérfido
engano com que tenta seduzir o homem.
3.
Já no começo do mundo mentiu e enganou as almas crédulas e ingênuas (dos nossos
primeiros pais), acariciando-as com palavras falazes [Gên 3,1ss] . Igualmente
ousou tentar a Cristo, nosso Senhor, e se aproximou dele insinuando,
disfarçando, mentindo. Foi contudo desmascarado e repelido. Desta vez, foi
derrotado porque foi reconhecido e descoberto [Mt 4,1ss].
II - ACIMA DE TUDO, CUMPRIR OS MANDAMENTOS DE CRISTO
1.
Sirvam-nos estes exemplos. Evitemos o caminho do homem velho, para não cair no
laço da morte. Sigamos as pisadas de Cristo vencedor, para que, usando cautela
diante do perigo, alcancemos a verdadeira imortalidade.
2.
Mas, como poderíamos chegar à imortalidade, sem observar os mandamentos de
Cristo? São eles os únicos meios para combater e vencer a morte. Ele nos avisa:
"Se queres chegar à vida, observa os mandamentos" (Mt 19,17), e, de
novo: "Se fizerdes o que vos mando, já não vos chamarei servos, mas
amigos" (Jo 15,15).
3.
Esses são os que ele diz serem fortes e firmes. Esses têm fundamento sólido na
pedra, e gozam de inabalável resistência contra todas as tempestades e as
rajadas do século. "Quem ouve as minhas palavras - diz ele - e as cumpre é
semelhante ao homem sábio que construiu a sua casa sobre a pedra. Desceu a
chuva, desabaram as correntes, sopraram os ventos, batendo contra aquela casa,
e ela não caiu porque fora fundada na pedra" (Mt 7,25).
4.
Devemos, pois, prestar atenção às suas palavras, devemos aprender e praticar o
que ele ensinou e o que fez. Como poderia asseverar que acredita em Cristo
aquele que não cumpre o que Cristo mandou? E como conseguirá o prêmio da fé
aquele que recusa a fé no que foi mandado? Fatalmente ele irá vacilando, à
ventura, e, arrastado pelo espírito do erro, será varrido como pó agitado pelo
vento.
5.
Nunca poderão conduzir à salvação os passos daquele que não adere à verdade da
única via que salva.
III - O DEMÔNIO É O AUTOR DOS CISMAS
1.
Devemos pois guardar-nos, irmãos caríssimos, não só dos males que aparecem
claramente como tais, mas também, como já disse, daqueles que nos enganam pela
sutileza da astúcia e da fraude.
2.
Pois bem, vede agora a que ponto chega a astúcia e a sutileza do inimigo. Veio
Cristo ao mundo. Veio a luz para os povos e resplandeceu para a salvação dos
homens [Lc 2,32]. Com isto ficou descoberto e derrotado o antigo adversário. Os
surdos abrem os ouvidos às graças espirituais, os cegos abrem os olhos a Deus,
os enfermos ficam são ao ganhar a saúde eterna, os coxos correm à Igreja, os
mudos soltam as suas línguas na oração [Mt 11,5; Lc 7,22]. Aumenta dia a dia o
povo fiel, abandonam-se os velhos ídolos, tornam-se desertos os seus templos.
3.
Então, o que faz o malvado? Inventa nova fraude para enganar os incautos com o
próprio título do nome cristão. Introduz as heresias e os cismas para derrubar
a fé, para contaminar a verdade e dilacerar a unidade. Assim, não podendo mais
segurar os seus na cegueira da antiga superstição, os rodeia, os conduz ao erro
por novos caminhos. Rouba à Igreja os homens e, fazendo-lhes acreditar que
alcançaram a luz e se subtraíram à noite do século, envolve-os ainda mais nas
trevas: não observam a lei do Evangelho de Cristo e se dizem cristãos, andam na
escuridão e pensam que possuem a luz, nisto são iludidos e lisonjeados pelo
adversário, que, como diz o Apóstolo, "se transfigura em anjo de luz"
(2Cor 11,14).
4.
Disfarça seus ministros em ministros de justiça, ensina-lhes a dar à noite o
nome de dia, à perdição o nome de salvação, ensina-lhes a propalar o desespero
e a perfídia sob o rótulo da esperança e da fé, a apregoar o Anticristo com o
nome de Cristo. Mestres na arte de mentir, diluem com as suas sutilezas toda a
verdade.
5.
Isto acontece, irmãos caríssimos, porque não se bebe à fonte mesma da verdade,
não se busca aquele que é a Cabeça, nem se observam os ensinamentos do Mestre
celestial.
IV - "TU ÉS PEDRO, E SOBRE ESTA PEDRA..."
1.
Quem presta atenção a estes ensinamentos não precisa de longo estudo, nem de
muitas demonstrações. A prova da nossa fé é fácil e compendiosa.
2.
Assim fala o Senhor a Pedro: "Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja e as portas dos infernos não a vencerão.
Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus e tudo o que ligares na terra será ligado
também nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado também nos
céus" (Mt 16,18-19).
3.
Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição, tenha
comunicado igual poder a todos os Apóstolos, dizendo: "Como o Pai me
enviou, eu vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo, a quem perdoardes os
pecados ser-lhe-ão perdoados, a quem os retiverdes ser-lhe-ão retidos" (Jo
20,21-23), todavia, para tornar manifesta a unidade, dispôs com a sua
autoridade que a origem da unidade procedesse de um só.
4.
É verdade que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo recebido igual
parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa pela unidade a fim de
que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
5.
O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja única quando
diz no Cântico dos Cânticos: "Uma só é a minha pomba, a minha perfeita,
única filha da sua mãe e sem igual para a sua progenitora" (Cânt 6,9).
6.
Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele
que resiste e faz oposição à Igreja poderá confiar que ainda está na Igreja?
7.
Paulo apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da unidade,
dizendo: "Um só corpo e um só espírito, uma é a esperança da vossa
vocação, um Senhor, uma fé, um Batismo, um só Deus" (Ef 4,4-5).
8.
E, depois da ressurreição, diz ao mesmo: "Apascenta as minhas
ovelhas" (Jo 21,17). Sobre ele só constrói a Igreja e lhe manda que
apascente as suas ovelhas. Embora comunique a todos os Apóstolos igual poder,
todavia institui uma só cátedra, determinando assim a origem da unidade.
9.
É verdade que os demais [Apóstolos] eram o mesmo que Pedro, mas o primado é
conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só
cátedra. Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que deve ser
apascentado por todos os Apóstolos em unânime harmonia.
10.
Aquele que não guarda esta unidade, proclamada também por Paulo, poderá pensar
que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de Pedro, sobre o qual foi
fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na Igreja?
V - A IGREJA ÚNICA E UNIVERSAL: MUITOS SÃO OS RAIOS, UMA A LUZ...
1.
Esta unidade devemos guardar e exigir com firmeza, especialmente nós, bispos,
que na Igreja presidimos, para dar prova de que o episcopado também é um e
indiviso. Ninguém engane os irmãos com mentiras, ninguém corrompa a pureza da
fé com pérfidos desvios.
2.
Uma só é a ordem episcopal e cada um de nós participa dela completamente. Mas a
Igreja também é uma, embora, em seu fecundo crescimento, se vá dilatando numa
multidão sempre maior.
3.
Assim muitos são os raios do sol, mas uma só é a luz, muitos os ramos de uma
árvore, mas um só é o tronco preso à firme raiz. E quando de uma única nascente
emanam diversos riachos, embora corram separados e sejam muitos, graças ao
copioso caudal que recebem, todavia permanecem unidos na fonte comum.
4.
Se pudéssemos separar o raio do corpo do sol, na luz assim dividida já não
haveria unidade. Quando se quebra um ramo da árvore, o ramo quebrado já não
pode vicejar. Se separamos um regato da fonte, ele secará.
5.
Igualmente a Igreja do Senhor, resplandecente de luz, lança seus raios no mundo
inteiro, mas a sua luz, difundindo-se em toda a parte, continua sendo a mesma
e, de modo nenhum, é abalada a unidade do corpo.
6. Na sua exuberante fertilidade, estende os
seus ramos em toda a terra, derrama as suas águas em vivas torrentes, mas uma
só é a cabeça, uma a fonte, uma a mãe, tão rica nos frutos da sua fecundidade.
Do parto dela nascemos, é dela o leite que nos alimenta, dela o Espírito que
nos vivifica.
VI
- ÚNICA ESPOSA DE CRISTO: NÃO PODE TER DEUS POR PAI, QUEM NÃO TEM A IGREJA POR
MÃE
1.
A Esposa de Cristo não pode tornar-se adúltera, ela é incorruptível e casta [Cf
Ef 5,24-31]. Conhece só uma casa, observa, com delicado pudor, a
inviolabilidade de um só tálamo. É ela que nos guarda para Deus e torna
partícipes do Reino os filhos que gerou.
2.
Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica privado
dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo não chegará aos
prêmios de Cristo. Torna-se estranho, torna-se profano, torna-se inimigo.
3.
Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém se pôde
salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da Igreja.
4.
O Senhor nos alerta e diz: "Quem não está comigo está contra mim, quem
comigo não recolhe, dissipa" (Mt 12,30). Quem rompe a paz e a concórdia de
Cristo trabalha contra Cristo. Quem faz colheita alhures, fora da Igreja, esse
dissipa a Igreja de Cristo.
5. Diz
ainda o Senhor: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,30), e do Pai, do Filho
e do Espírito Santo está escrito: "Estes três são um" (1Jo 5,7). Como
poderá alguém pensar que esta unidade da Igreja, decorrente da própria firmeza
da unidade divina, e tão conforme com este celeste mistério, pode ser rompida e
sacrificada ao arbítrio de vontades opostas? Quem não observa esta unidade não
observa a lei de Deus, não observa a fé do Pai e do Filho, não possui nem a
vida, nem a salvação.
VII - A TÚNICA INCONSÚTIL DE CRISTO
1.
Este sacramento da unidade, este vínculo de concórdia inviolada e sem
rachadura, é figurado também pela túnica do Senhor Jesus Cristo. Como lemos no
Evangelho, ela não foi dividida, nem, de modo algum, rasgada, mas sorteada.
Isto quer dizer que quem toma a veste de Cristo e tem a dita de se revestir do
próprio Cristo [Rom 13,14; Gál 3,27], deve receber a sua túnica toda inteira e
possuí-la intacta e sem divisão.
2.
Diz a divina Escritura: "Quanto à túnica, visto que, desde a parte
superior, era feita de uma única tecedura, sem costura alguma, disseram: não a
dividamos, mas lancemos-lhe a sorte para ver a quem toca" (Jo 19,23-24). A
unidade da túnica derivava da sua parte superior - em nosso caso, do céu e do
Pai celeste. Aquele que a recebia e guardava não podia rasgá-la de modo nenhum,
de fato ela era resistente e sólida por ser constituída de um modo inseparável.
3.
Não pode possuir a veste de Cristo aquele que rasga e divide a Igreja de
Cristo.
4.
O contrário aconteceu à morte de Salomão, quando o seu reino e o povo deviam
ser divididos. O profeta Aías, indo ao encontro do rei Jeroboão no campo,
cortou o seu manto em doze partes, dizendo: "Toma para ti dez partes,
porque assim diz o Senhor: eis que eu divido o reino da mão de Salomão, a ti
darei dez cetros e dois ficarão para ele, por causa do meu servo Davi e de
Jerusalém, a cidade eleita em que eu pus o meu nome" (1Rs 11,30-36). Para
separar as doze tribos de Israel, o profeta dividiu O seu manto.
5. Mas o povo de Cristo não pode ser dividido,
e por isso a sua túnica, que era um todo feito de uma só tecedura, não foi
dividida por aqueles que a deviam possuir. Ficando uma só, bem firme na sua
contextura, ela mostra a união e a concórdia do nosso povo, isto é, daqueles
que são revestidos de Cristo. Por este sinal sagrado da sua veste, proclamou
ele a unidade da Igreja.
VIII - FIGURAS DO ANTIGO TESTAMENTO: RAABE, O CORDEIRO PASCAL
1.
Portanto quem será tão celerado e pérfido, tão louco pelo furor da discórdia,
para pensar como possível ou até para ousar romper a unidade de Deus, a veste
do Senhor, a Igreja de Cristo?
2.
Ainda uma vez nos avisa ele no Evangelho dizendo: "E haverá um só rebanho
e um só pastor" (Jo 10,16). E como se pode pensar que, num mesmo lugar,
existam muitos pastores e muitos rebanhos?
3.
O apóstolo Paulo, por sua vez, inculcando esta mesma unidade, suplica e exorta:
"Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que todos
digais as mesmas coisas e não se dêem cismas entre vós. Sede unidos no mesmo
sentimento e no mesmo pensamento" (1Cor 1,10) E de novo:
"Sustentando-vos mutuamente no amor, esforçando-vos por conservar a
unidade do Espírito na união da paz" (Ef 4,2-3).
4.
Achas tu que alguém pode afastar-se da Igreja, fundar, a seu arbítrio, outras
sedes e moradias diversas e ainda perseverar na vida? Ouve o que foi dito a
Raabe, na qual era prefigurada a Igreja: "Recolhe teu pai, tua mãe, teus
irmãos e toda a tua família junto de ti, na tua casa, e qualquer um que ouse
sair fora da porta da tua casa, será ele próprio culpado da sua perda"
(Jos 2,18-19).
5.
Igualmente o sacramento da Páscoa [antiga], como lemos no Êxodo, exigia que o
cordeiro, morto como figura de Cristo, fosse comido numa só casa. Eis as
palavras de Deus: "Seja comido numa só casa, não jogueis fora da casa
carne alguma dele" (Ex 12,46). A carne de Cristo, o Santo do Senhor, não
pode ser jogado fora. Para os que nele crêem, não há outra casa a não ser a
única Igreja.
6.
O Espírito Santo anuncia e significa esta casa, esta morada da união dos corações,
dizendo nos salmos: "Deus faz habitar na casa aqueles que são
unânimes" (Sl 67,7). Na casa de Deus, na Igreja de Cristo, os moradores
são unidos e perseveram na concórdia e na simplicidade.
A UNIDADE DA IGREJA CATÓLICA
Parte II
IX - A POMBA, EXEMPLO DE SOCIABILIDADE E CONCÓRDIA
1.
Por isto também o Espírito Santo desceu em forma de pomba [Mt 3,16; Mc 1,10],
animal simples e alegre, sem amargura alguma de fel, incapaz de se enfurecer;
não morde, não arranha com as unhas. Prefere as moradias dos homens e gosta de
habitar numa mesma casa. Quando criam, as pombas cuidam dos filhotes
juntamente, quando viajam, voam pertinho umas das outras. Passam o tempo em
tranqüilos arrulhos, manifestam a concórdia e a paz beijando-se no rosto.
Enfim, em todas as coisas seguem a lei da boa harmonia.
2.
Esta é a simplicidade que deve reinar na Igreja, essa a caridade que devemos
realizar: o amor fraternal imite as pombas, a mansidão e a brandura sejam
iguais às dos cordeiros e das ovelhas.
3.
Como podem estar no coração de um cristão a ferocidade dos lobos, a raiva dos
cães, o veneno mortífero das serpentes ou a crueldade sanguinária das feras?
4.
Devemos alegrar-nos quando os que têm esses sentimentos se separam da Igreja.
Assim as pombas e as ovelhas de Cristo não serão contagiadas pela sua maldade e
pelo seu veneno. Não podem conciliar-se e juntar-se amargura e doçura, trevas e
luz, chuva e céu sereno, guerra e paz, esterilidade e fecundidade, secura e
manancial, tempestade e bonança.
5.
Não acreditem que os bons possam deixar a Igreja: não é o trigo que o vento
carrega, o furacão não arranca as árvores que têm sólidas raízes. Ao contrário
são as palhas vazias que a tormenta agita, são as árvores vacilantes que a
força dos turbilhões abate. Contra esses o apóstolo S. João manifesta a sua
repulsa, dizendo: "Saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos. Se
tivessem sido dos nossos, sem dúvida teriam ficado conosco" (1Jo 2,19).
X - ORIGEM E MALDADE DAS HERESIAS
1.
A origem de onde nasceram frequentemente e continuam nascendo as heresias é a
seguinte: há mentes perversas e sem paz, que, discordando em sua perfídia, não
podem suportar a unidade. O Senhor, por seu lado, respeita a liberdade do
arbítrio humano, permite e tolera que isto aconteça, a fim de que o crisol da
verdade purifique os nossos corações e as nossas mentes, e, na provação,
resplandeça com luz inequívoca a integridade da fé.
2.
O Espírito Santo nos previne, por meio do Apóstolo: "Convém que haja
heresias para que entre vós se tornem manifestos os que resistem à prova"
(1Cor 11,19). Assim, aqui mesmo, antes do dia do juízo, são divididas as almas
dos justos e dos perversos e as palhas são separadas do trigo.
3.
Esses são os que, por própria iniciativa e sem chamamento divino, se põem a
encabeçar temerários grupinhos. Contra toda a lei da ordenação, se constituem
superiores e, sem que ninguém lhes dê o episcopado, se atribuem a si mesmos o
nome de bispos. A eles faz alusão o Espírito Santo, no Salmo, falando dos que
estão sentados em cátedras de pestilência, porque são peste infecciosa da fé.
Mestres na arte de corromper a verdade, eles enganam com bocas de serpente,
vomitando de suas línguas pestilentas peçonhas mortíferas. Os seus discursos
brotam como chaga cancerosa, o trato com eles deixa no fundo de cada coração um
veneno mortal.
XI - O BATISMO CISMÁTICO
1.
Contra esses homens brada o Senhor, para afastar ou retirar deles o seu povo
desviado: "Não escuteis os sermões dos pseudoprofetas, porque vivem
iludidos pelas alucinações do seu coração. Falam, mas não as palavras do
Senhor. Aos que rejeitam a palavra de Deus dizem eles: tereis a paz, vós e
todos os que andam segundo as próprias vontades. Não virá mal algum, ainda
sobre aqueles que seguem os erros do próprio coração. Eu não lhes falei e eles
vão profetando. Se tivessem atendido ao meu conselho, ouvido as minhas palavras
e as tivessem ensinado ao meu povo, eu os teria convertido dos seus perversos
pensamentos" (Jer 23,16-22).
2.
E de novo fala deles o Senhor: "Abandonaram a mim, que sou a fonte da água
viva, e escavaram para si covas escuras, que nem podem dar água" (Jer
2,13).
3.
Enquanto não pode haver senão um Batismo, eles pensam que podem batizar.
Abandonaram a fonte da vida e ainda prometem a graça da água que dá a vida e a
salvação. Lá os homens não são purificados, mas, ao contrário, mais poluídos.
Lá os pecados não são perdoados, mas, antes, aumentados. Aquele nascimento não
gera filhos para Deus, mas para o demônio.
4. Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente as promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam a graça da fé. Aqueles que, no delírio da discórdia, quebraram a paz do Senhor, não podem chegar ao prêmio da paz.
4. Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente as promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam a graça da fé. Aqueles que, no delírio da discórdia, quebraram a paz do Senhor, não podem chegar ao prêmio da paz.
XII - "ONDE DOIS OU TRÊS..." (Mt 18,20)
1.
Alguns se enganam a si mesmos com uma presunçosa interpretação das palavras do
Senhor, que disse: "Onde quer que se encontrem dois ou três reunidos em
meu nome, eu mesmo estou com eles" (Mt 18,20).
2. São falsificadores do Evangelho e
intérpretes mentirosos. Apegam-se ao que é dito depois, esquecendo o que foi
dito antes, lembram-se de uma parte da frase e, astutamente, deixam do lado a
outra. Assim como eles se separaram da Igreja, do mesmo modo truncam o sentido
de uma única sentença.
3.
De fato, o que queria dizer nosso Senhor? Para inculcar aos seus discípulos a
união e a paz, diz ele: "Eu vos afirmo que, se dois de vós concordarem na
terra em pedir qualquer coisa, ela lhes será outorgada por meu Pai que está nos
céus" (Mt 18,19). E continua: "Onde quer que se encontrem dois ou três
reunidos em meu nome, eu mesmo estou com eles", mostrando que o que mais
vale na oração não é o número dos que oram, mas a sua união de espírito.
4.
"Se dois de vós concordarem na terra", diz ele. Antes exige a união,
põe na frente a paz: o seu primeiro e mais firme preceito é que entre nós haja
acordo. E como poderá estar de acordo com alguém aquele que está em desacordo
com o corpo da Igreja e a totalidade dos irmãos?
5.
Como poderão estar reunidos dois ou três em nome de Cristo, se é patente que
estão separados de Cristo e do seu Evangelho? De fato não somos nós que nos
apartamos deles, mas eles de nós. E quando, em seguida, formando entre si
vários grupos, deram origem a heresias e cismas, abandonaram a cabeça e a fonte
da verdade.
6.
O Senhor quer falar da sua Igreja e dirige aquelas palavras àqueles que estão
na Igreja, dizendo que, se dois ou três deles estiverem concordes, como ele
ensinou e mandou, e se reunirem em um só espírito para rezar, embora sejam só
dois ou três, impetrarão da majestade de Deus o que pedem.
7.
"Onde quer que se encontrem reunidos em meu nome dois ou três, eu mesmo
estou com eles", quer dizer com os simples, com os pacíficos, com os que
temem a Deus e observam os seus preceitos. Com esses, ainda que não fossem mais
do que dois ou três, prometeu que estaria, assim como esteve com os três jovens
na fornalha ardente, e, porque permaneciam simples com Deus e unidos entre si,
até no meio das chamas, os animou com uma brisa de orvalho (Dan 3,50).
8.
Do mesmo modo esteve presente aos dois Apóstolos encerrados na cadeia, porque
eram simples e unânimes. Ele mesmo abriu as portas do cárcere e os conduziu de
novo à praça para que pregassem à multidão a palavra que tão fielmente
anunciavam.
9.
Por conseguinte, quando o Senhor coloca entre os seus preceitos estas palavras:
"Onde quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome, eu mesmo
estou com eles", não quer separar os homens da Igreja, pois ele mesmo
instituiu e formou a Igreja, mas ao contrário, repreendendo os pérfidos pela
discórdia e encarecendo, com a sua própria voz, a paz aos fiéis, quer mostrar
que ele está mais com dois ou três que oram unânimes, do que com muitos que
oram na dissidência, e que obtém mais a prece concorde de poucos que a oração
sediciosa de muitos.
XIII - NÃO ACHARÁ A DEUS PROPÍCIO QUEM NÃO ESTÁ EM PAZ COM O IRMÃO
1.
Por isto, quando ensinou o modo de orar, acrescentou: "Quando estiverdes
em pé para orar, perdoai, se por acaso tendes mágoa contra alguém, a fim de que
o vosso Pai que está nos céus vos perdoe também os pecados" (Mc 11,25). E
se alguém vier ao sacrifício, estando de mal com alguém, ele o afasta do altar
e ordena que, antes, se ponha de acordo com o irmão, e só depois volte em paz
para oferecer a Deus a sua dádiva [Cf Mt 5,24].
2.
Deus não olhou aos presentes de Caim [Gên 4,5], porque aquele que, pelo rancor
da inveja, não tinha paz com o irmão, não podia encontrar a Deus propício.
3.
Que espécie de paz podem pretender os inimigos dos irmãos? Que sacrifício
pensam eles oferecer, enquanto não são que rivais dos sacerdotes? Julgam que
Cristo esteja presente nas suas reuniões, enquanto se reúnem fora da Igreja de
Cristo?
XIV - NEM O MARTÍRIO LAVA A MANCHA DA DISCÓRDIA
1.
Ainda que esses homens fossem mortos pela confissão do nome cristão, o seu
sangue não lavaria esta mancha. O pecado da discórdia é tão grande e tão
imperdoável, que não se apaga nem pelos tormentos. Não pode ser mártir quem não
está na Igreja, não pode alcançar o Reino quem abandonou aquela que nasceu para
reinar.
2.
Cristo nos deu a paz. Ele nos mandou que fôssemos concordes e unidos, ordenou
que os laços do amor e da caridade fossem conservados intactos e sem rachadura.
Não pode iludir-se de ser mártir aquele que não conservou a caridade fraterna.
3.
O apóstolo Paulo ensina e testemunha isto mesmo quando diz: "Ainda que eu
tivesse fé para remover as montanhas, mas não tivesse a caridade, eu nada
seria, ainda que distribuísse em alimento dos pobres tudo o que é meu, e
entregasse o meu corpo às chamas, mas não tivesse a caridade de nada adiantaria.
A caridade é magnânima, a caridade é benigna, a caridade não rivaliza, não faz
mal, não se pavoneia, não se irrita, não pensa com maldade, tudo ama, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais termina" (1Cor 13,1-9).
4.
A caridade nunca termina, ela estará sempre no Reino, durará eternamente pela
unidade dos irmãos em mútua harmonia. A discórdia não entra no Reino dos céus.
Quem, com pérfida divisão, violou a caridade de Cristo, não poderá chegar aos
prêmios do mesmo Cristo, que disse: "Este é o meu mandamento, que vos
ameis mutuamente como eu vos amei" (JO 15,12).
5.
Quem vive sem caridade está sem Deus. Eis a voz do bem-aventurado apóstolo
João: "Deus é amor. Quem permanece no amor permanece em Deus e Deus
nele" (1Jo 4,16). Não podem permanecer com Deus os que não quiseram estar
unidos na Igreja de Deus. Ainda que, lançados no fogo, fossem consumidos pelas
chamas ou perdessem a vida sendo expostos às feras, tudo isto não seria unia
coroa da fé, mas, antes, um castigo da sua perfídia, não seria o desfecho
glorioso de uma vida religiosa intrépida, mas um fim sem esperança.
6.
Um homem assim poderia ser morto, mas não coroado. Ele confessa que é cristão
do mesmo modo que o diabo, muitas vezes, engana dizendo ser ele o Cristo.
Escutemos o aviso do Senhor: "Muitos virão com o meu nome, dizendo: sou eu
o Cristo, e enganarão a muitos" (Mc 13,16). Como o diabo não é Cristo,
embora tome este nome, assim não pode passar por cristão aquele que não
permanece na verdade do Evangelho e na fé de Cristo.
XV - A LEI DO AMOR E A UNIDADE
1.
É certamente coisa incomum e admirável profetizar, expulsar demônios e fazer
obras portentosas aqui na terra, mas quem faz todas essas coisas não conseguirá
o Reino celeste se não anda no caminho reto e certo.
2.
Ouçamos ainda o Senhor: "Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não
te lembras que em teu nome profetizamos e em teu nome expulsamos demônios e em
teu nome fizemos obras portentosas? Eu porém lhes direi: jamais vos conheci,
apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade" (Mt 7,21-23). É
necessária a justiça para que alguém possa ser premiado por Deus. É necessário
obedecer aos seus mandamentos e aos seus avisos, para que os nossos méritos
alcancem a recompensa.
3.
O Senhor, no Evangelho, querendo mostrar-nos em breve resumo a senda da nossa
fé e da nossa esperança, disse: "O Senhor, teu Deus, é um só", e
continua: "Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a
tua alma, de todas as tuas forças" (Mc 12,29-31). "Eis o primeiro
mandamento. O segundo é semelhante a ele: amarás ao teu próximo como a ti
mesmo. Nestes dois preceitos funda-se toda a lei e também os profetas" (Mt
22,39-40).
4.
Com a sua autoridade ensinou, ao mesmo tempo, a unidade e o amor. Em dois
preceitos compendiou a lei e todos os Profetas. Mas que unidade observa, que
amor pensa praticar aquele que, como doido pelo furor da discórdia, divide a
Igreja, destrói a fé, perturba a paz, aniquila a caridade, profana o
Sacramento?
XVI - ESSAS ABERRAÇÕES FORAM PREDITAS
1.
Este mal, ó irmãos fidelíssimos, já tinha começado algum tempo atrás, mas
agora, como triste calamidade, foi crescendo dia a dia e a venenosa praga da
heresia e dos cismas aparece e pulula sempre mais. Assim deve acontecer no fim
do mundo, como nos vaticina e nos avisa o Espírito Santo por meio do Apóstolo:
"Nos últimos dias, diz ele, chegarão tempos difíceis e haverá homens que
só buscam os próprios gostos, soberbos, arrogantes, avarentos, blasfemos,
desobedientes aos pais, ingratos, desalmados, sem afeição e sem respeito de
compromisso, caluniadores, incontinentes, violentos, sem nenhum amor ao bem,
traidores, atrevidos, estupidamente altivos, amando mais os prazeres que Deus,
ostentando um verniz de religiosidade, mas conculcando todo valor religioso.
Deles são os que se insinuam nas casas e conquistam mulherzinhas carregadas de
pecados, que se deixam levar por várias volúpias e se mostram sempre curiosos
de saber, mas nunca chegam ao conhecimento da verdade. E como Jamnes e Mambres
fizeram resistência contra Moisés, assim estes resistem à verdade. Mas não
serão bem sucedidos, porque a sua incapacidade será a todos manifesta, como
aconteceu àqueles" (2Tim 3,1-9).
2.
Tudo o que tinha sido preanunciado se está cumprindo e, enquanto se aproxima o
fim do mundo, tudo se realiza nas pessoas e nos acontecimentos.
3.
O adversário está solto. Cada vez mais, o erro vai espalhando os seus enganos.
A insensatez gera orgulho, arde a inveja, a cobiça chega até à cegueira, a
impiedade deprava, a soberba incha, a discórdia exaspera, a ira enfurece.
A UNIDADE DA IGREJA CATÓLICA
Parte III
XVII - NÃO CEDER AO ESCÂNDALO. EVITAR OS HEREGES
1.
Porém não nos impressione nem perturbe essa desmedida e temerária perfídia de
muitos. Ao contrário, torne-se mais forte a nossa fé ao constatarmos a verdade
do que foi profetizado. Alguns fizeram-se traidores, porque assim fora predito;
os demais irmãos, em virtude da mesma profecia, acautelem-se contra essas
coisas, escutando a voz do Senhor, que diz: "Vós, porém, acautelai-vos,
porque eis que eu vos predisse tudo" (Mc 13-23).
2.
Evitai, pois, eu vo-lo peço, irmãos, esses homens e repeli, de vosso lado e de
vossos ouvidos suas perniciosas conversas, como se repele um contágio
mortífero. Está escrito: "Cerca os teus ouvidos com uma sebe de espinhos e
não ouças a língua maldosa" (Eclo 28,24). E ainda: "As péssimas
conversas corrompem até as pessoas de boa índole" (1Cor 15,33). O Senhor
nos recomenda que evitemos essa gente. "São cegos, diz ele, e guias de
cegos. Quando é um cego que conduz outro cego, caem juntos na fossa" (Mt
15,14).
3.
Convém estar longe e fugir de qualquer um que se separou da Igreja. É um
transviado, um culpado, ele se condena por si próprio [Cf Ti 3,11]. Poderá
pensar que está com Cristo aquele que está tramando contra os sacerdotes de
Cristo e se separa da comunidade do seu clero e do seu povo? Ele levanta armas
contra a Igreja e resiste às ordens de Deus. Adversário do altar, rebelde
contra o Sacrifício de Cristo, traidor na fé, sacrílego na religião, servo
intratável, filho ímpio, irmão inimigo, despreza os bispos e abandona os
sacerdotes de Deus e ousa erguer um outro altar, pronunciar com voz ilícita uma
outra prece, profanar, com falsos sacrifícios, a Hóstia do Senhor, e esquece
que quem vai contra as ordens de Deus será punido com os divinos castigos pela
sua atrevida audácia.
XVIII - CASTIGOS DOS PROFANADORES DO CULTO
1.
Assim Coré, Datã e Abirão receberam, sem demora, o castigo da sua presunção,
porque, violando as ordens de Moisés e do sacerdote Aarão, pretenderam usurpar
o direito de oferecer sacrifícios [Cf Num 16,31-35]. A terra perdeu a sua
firmeza, fendeu-se numa profunda voragem, e o chão, assim aberto, os engoliu
vivos e em pé. A justiça indignada de Deus não atingiu só os autores daquele
gesto, mas também os outros duzentos e cinqüenta, seus companheiros, que foram
cúmplices e solidários com eles. De repente saiu do Senhor um fogo punitivo e
os consumiu. Isto deve valer como demonstração e sinal de que foi ofensa contra
Deus tudo o que aqueles perversos tentaram, com suas vontades humanas, para
frustrar as ordens do próprio Deus.
2.
Assim aconteceu também ao rei Ozias, quando segurou o turíbulo e, com
violência, pretendeu oferecer ele mesmo o incenso, violando a lei de Deus e
desobedecendo ao sacerdote Azarias, que a isto se opunha [Cf 2Crôn 26,16-20].
Lá mesmo foi confundido pela divina indignação e acometido por uma espécie de
lepra na fronte. Pela sua ofensa a Deus, foi punido justamente naquela parte do
corpo, onde recebem o sinal (da cruz) os eleitos de Deus.
3.
Também os filhos de Aarão, por ter colocado no altar um fogo profano, contra os
preceitos do Senhor, foram mortos no mesmo instante pela divina vingança [Cf
Lev 10,1-2; Num 3,4].
XIX - MENOS GRAVE É O PECADO DOS LAPSOS
1.
São esses os exemplos que seguem e imitam os que buscam doutrinas estranhas,
introduzem ensinamentos de invenção humana e desprezam a divina tradição. A
eles aplicam-se as repreensões e as censuras do Evangelho: "Rejeitais o
mandamento de Deus para apegar-vos à vossa própria tradição (pagã)" (Mc
7,90).
2.
Este crime é pior do que aquele que se pensa terem cometido os lapsos, ao menos
se falarmos dos que estão arrependidos e rogam a Deus perdão do seu pecado,
dispostos a dar completa satisfação. Os lapsos, com súplicas, procuram a
Igreja, os cismáticos combatem-na. Os primeiros podem ter sido vítimas de
alguma pressão, os segundos erram no pleno uso da sua liberdade. O lapso,
pecando, se prejudicou unicamente a si mesmo, ao passo que aquele que tenta
criar heresias e cismas engana a muitos, arrastando-os à sua seita. Lá há
detrimento de uma só alma, aqui o perigo é de muitos. O lapso reconhece que
certamente pecou, disto lamenta-se e chora, o cismático, cheio de orgulho no
seu coração e comprazendo-se dos seus próprios erros, arranca os filhos à mãe,
afasta, com aliciamentos, as ovelhas do Pastor, arrasa os divinos Sacramentos.
3.
O lapso pecou só uma vez, o outro continua pecando a cada dia. Por fim, o
lapso, mais tarde, poderá enfrentar o martírio e conseguir as promessas do
Reino, o cismático, ao contrário, se for morto enquanto está fora da Igreja,
não alcançará os prêmios da Igreja.
XX - CONFESSORES QUE NÃO PERSEVERARAM
1.
Não deveis estranhar, irmãos diletíssimos, que até entre os confessores haja
alguns que caíram nestes crimes. Acontece também que alguns deles cometam
outros pecados graves e vergonhosos. A confissão da fé não torna uma pessoa
imune das ciladas do demônio. A quem ainda vive neste mundo ela não comunica
uma perpétua segurança contra as tentações, os perigos e o ímpeto dos ataques
mundanos. Se assim fosse, não veríamos, em confessores, os roubos, os estupros
e os adultérios, que agora, com imensa tristeza, devemos lamentar em alguns
deles.
2.
Quem quer que seja um confessor, ele não poderá ser maior, melhor e mais amigo
de Deus que Salomão. Entretanto, este, durante o tempo em que se manteve nos
caminhos do Senhor, conservou a benevolência com que o mesmo Senhor o tinha
favorecido, mas quando se desviou destes caminhos, perdeu também a benevolência
do Senhor [3Rs 11,9].
3.
Por isto diz a Escritura: "Segura o que tens, para que um outro não tome a
tua coroa" (Ap 3,11). Se lá o Senhor ameaça tirar a alguém a coroa da
justiça, é sinal que quem renuncia à justiça fica privado também da coroa.
XXI - A HONRA DA "CONFISSÃO" AUMENTA O DEVER DO BOM
EXEMPLO
1.
A confissão da fé é um preâmbulo da glória, mas não é ainda a posse da coroa.
Não é a glória definitiva, mas só o início do mérito. Está escrito: "O que
perseverar até o fim, este será salvo" (Mt 10,22). Tudo pois o que fazemos
antes do fim é só um passo com o qual vamos subindo ao monte da salvação, mas
só ao fim da subida chegaremos à posse perfeita do cume.
2.
Trata-se de um confessor? Ora, depois da confissão da fé, o perigo torna-se
maior, porque o adversário está mais enraivecido contra ele.
3.
É confessor? Por isto, mais do que nunca, deve permanecer fiel ao Evangelho do
Senhor, ele que pelo Evangelho conseguiu esta honra. Diz o Senhor: "A quem
muito é dado, muito será pedido e a quem é concedida maior dignidade, deste exigem-se
maiores serviços" (Lc 12,48). Ninguém se deixe levar à perdição pelo mau
exemplo de algum confessor. Ninguém aprenda, do seu modo de proceder, a
injustiça, a arrogância ou a perfídia.
4.
É confessor? Seja humilde e tranqüilo em todo o seu comportamento, seja
disciplinado e modesto, de modo que, como é chamado confessor de Cristo, imite
também aquele Cristo que confessa "Quem se exalta será humilhado e quem se
humilha será exaltado" (Lc 18,14). Assim disse ele, e foi exaltado pelo
Pai, porque, sendo ele a Palavra, a Virtude e a Sabedoria de Deus Pai, se
humilhou a si mesmo na terra. E como poderia amar a altivez, ele que, com a sua
lei nos preceituou a humildade, e, em prêmio da sua humildade, recebeu do Pai o
nome mais sublime? [Cf Flp 2,9]
5.
Alguém foi confessor de Cristo? Muito bem, mas, depois, por sua culpa, não
sejam blasfemadas a majestade e a santidade do próprio Cristo. A língua que
confessou a Cristo não seja maldizente nem sediciosa, não se ouça vociferando
em altercações e brigas; depois de palavras tão divinas de louvor não vá
vomitando veneno de serpente contra os irmãos e contra os sacerdotes de Deus.
6.
Em suma, se alguém, depois da confissão, se tornou culpável e detestável, se
aviltou a sua confissão com maus comportamentos, se manchou a sua vida com
torpezas indignas, se, afinal, abandonou a Igreja, na qual se tornara
confessor, e, quebrando a harmonia da unidade, trocou a fé de então com a
perfídia, um tal homem não pode lisonjear-se, presumindo da sua confissão, de
ser como que predestinado ao prêmio da glória. Ao contrário, por isto mesmo,
aumentaram seus títulos para o castigo.
XXII - ELOGIO DOS CONFESSORES
1.
Vemos também que chamou a Judas entre os Apóstolos, e este Judas, em seguida,
traiu o Senhor. A fé e a perseverança dos Apóstolos não esmoreceram pelo fato
que Judas traidor tinha pertencido ao seu grupo. Igualmente em nosso caso: a
santidade e a dignidade dos confessores não ficam destruídas, se naufragou a fé
em alguns deles.
2.
O bem-aventurado apóstolo Paulo diz numa das suas cartas: "Se alguns
decaíram da fé, será que a sua infidelidade tornou vã a fidelidade de Deus? De
modo algum. De fato, Deus é verídico e todo homem é mentiroso" (Rom 3,3-4;
Sl 115,11).
3.
A maioria e a parte melhor dos confessores mantém-se no vigor da sua fé e na
verdade da lei e da disciplina do Senhor. Lembrando-se de ter alcançado a graça
e a benevolência de Deus na Igreja, não se afastam da paz da mesma Igreja.
Nisto merecem mais amplo louvor pela sua fé, porque, desligando-se da perfídia
daqueles que já foram seus companheiros na confissão, resistiram ao contágio do
mal. Iluminados pela luz verdadeira do Evangelho, brilhando na pura e cândida
claridade do Senhor, mostram-se tão dignos de encômio na conservação da paz de
Cristo, quanto o foram no combate, quando se tornaram vencedores do demônio.
XXIII - APELO AOS QUE FORAM ENGANADOS
1.
Quanto a mim, irmãos diletíssimos, não deixo de exortar e insistir, porque
desejo que, se for possível, nenhum dentre os irmãos pereça, e a mãe feliz (a
Igreja) abranja no seu regaço o seu povo, unido na concórdia como um só corpo.
Se, todavia, este salutar conselho não consegue reconduzir ao caminho da
salvação certos chefes de cismas e certos autores de dissensão, preferindo eles
obstinar-se em sua cega demência, ao menos os demais, os que foram
surpreendidos na sua simplicidade, ou se deixaram desviar por algum equívoco,
ou foram enganados pelo ardil de uma astúcia dissimulada, ao menos vós sacudi
os laços falaciosos, livrai dos erros os vossos passos extraviados, sabei
reconhecer o caminho reto que conduz ao céu.
2.
Ouvi a voz do Apóstolo, que clama: "Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo,
nós vos mandamos, diz ele, que vos afasteis de todos os irmãos que andam
desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós" (2Tes
3,6). E de novo: "Ninguém vos engane com vãs palavras. Por causa disto
veio a ira de Deus sobre os filhos da contumácia. Não estejais, pois, ao lado
deles" (Ef 5,6-7).
3.
Deveis evitar os delinqüentes e até fugir deles, para que não aconteça que,
juntando-se aos que trilham os caminhos do erro e do crime, alguém se desvie
também da verdade e se torne culpado de igual delito.
4.
Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé e o povo (cristão) é
também um, aglutinado pela concórdia como na compacta unidade de um corpo. Esta
unidade não pode ser quebrada. Um corpo não pode ser dividido, desarticulando
as suas junturas. Não pode ser reduzido a pedaços, dilacerando e arranhando as
suas vísceras. Tudo o que se separa do centro vital não pode continuar a viver
ou a respirar porque fica privado do alimento indispensável à vida.
XXIV - BEM-AVENTURADOS OS PACÍFICOS
1.
O Espírito Santo assim nos fala: "Quem é o homem que quer viver e deseja
ver dias excelentes? Refreia do mal a tua língua, e os teus lábios não falem
insidiosamente. Evita o mal e faze o bem, busca a paz e segue-a" (Sl
33,13-15). O filho da paz deve buscar a paz, deve procurá-la. Quem conhece e
ama o vínculo da caridade deve guardar a sua língua do flagelo da dissensão.
2.
O Senhor, já próximo à paixão, entre outros preceitos e ensinamentos salutares,
acrescentou o seguinte: "Eu vos entrego a paz, eu vos dou a minha
paz" (Jo 14,27). Esta é a herança que nos deixou. Todos os dons e todos os
prêmios das suas promessas estão incluídos nisto: a inviolabilidade da paz.
3.
Se somos co-herdeiros de Cristo [Cf Rom 8,17], permaneçamos na paz de Cristo.
Se somos filhos de Deus, sejamos pacíficos. "Bem-aventurados os pacíficos,
diz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). Convém, pois, que os
filhos de Deus sejam pacíficos, mansos de coração [Cf Mt 11,29], simples quando
falam, concordes nos afetos, sempre ligados uns aos outros pelos laços da
unidade de espírito.
XXV - O EXEMPLO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS
1.
Essa unidade reinou ao tempo dos Apóstolos e a nova plebe, o povo dos que
acreditaram, guardava os preceitos do Senhor e ficava fiel à sua caridade.
Prova-o a divina Escritura, dizendo: "A multidão daqueles que acreditaram
se comportava como se fossem todos uma só alma e uma só mente" (At 4,32).
2.
E antes: "Estavam perseverando todos unânimes na oração com as mulheres e
Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos" (At 1,14). Por isto oravam de modo
eficaz e podiam confiar em alcançar o que estavam pedindo à misericórdia
divina.
XXVI - EXORTAÇÃO PARA UMA VIDA CRISTÃ INTEGRAL
1.
Entre nós, ao contrário, esta união está demasiado relaxada, e ao mesmo tempo
aparece muito enfraquecida a generosidade nas obras (boas). Então vendiam as
suas casas e as suas propriedades e entregavam o preço aos Apóstolos, para que
fosse distribuído aos pobres: assim colocavam seus tesouros no céu [Cf Mt
6,19]. Hoje nem se dão os dízimos dos patrimônios e, enquanto o Senhor diz
"vendei" [Cf Lc 12,33], nós preferimos comprar e possuir mais. Como,
entre nós, murchou o vigor da fé, como esmoreceu a força daqueles que crêem!
2.
Por isto o Senhor, falando destes nossos tempos, diz no Evangelho: "Quando
vier o Filho do homem, pensas que encontrará fé na terra?" (Lc 18,8).
Vemos que está acontecendo o que ele predisse. No que diz respeito ao temor de
Deus, à lei da justiça, ao amor, às obras, não há mais fé. Ninguém se preocupa
com as coisas que hão de vir, ninguém pensa no dia do Senhor, na ira de Deus,
nos futuros suplícios dos incrédulos, nos eternos tormentos destinados aos
pérfidos. Se crêssemos, a nossa consciência teria medo de tudo isto. Se não
temos medo é sinal que não cremos. Quem acredita se acautela, quem se acautela
se salva.
3.
Despertemos, irmãos diletíssimos, quebremos o sono da inércia rotineira e, por
quanto for possível, sejamos vigilantes em guardar e cumprir os preceitos do
Senhor. Sejamos prontos, como ele seja, quando diz: "Estejam cingidos os
vossos rins, e as lâmpadas acesas nas vossas mãos, e vós sede semelhantes a
homens que esperam o seu dono, quando voltar das núpcias, para lhe abrirem logo
que ele chegar e bater. Bem-aventurados os servos que o Senhor, chegando,
encontrar vigilantes" (Lc 12,35-37). É necessário que estejamos cingidos,
a fim de que, quando vier o dia da partida, não sejamos surpreendidos cheios de
impedimentos e de embaraços. Fique sempre viva a nossa luz e brilhe em boas
obras, para nos guiar da noite deste mundo aos esplendores da claridade eterna.
Sempre solícitos e cautos, fiquemos à espera da chegada repentina do Senhor. Quando
ele bater, encontre a nossa fé vigilante com uma tal vigilância que mereça
receber o prêmio do mesmo Senhor.
4.
Se forem observados esses mandamentos, se forem postas em prática essas
exortações, não acontecerá que sejamos vencidos, no sono, pela falácia do
demônio, mas, como servos bons e vigilantes, reinaremos com Cristo glorioso.
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