sábado, 6 de setembro de 2014

Patrística - Vida de Hilarião 420 dC

(Patrística) 
Vida de Hilarião 420 dC
(Autor: São Jerônimo)


PRÓLOGO

         Ao dispor-me a escrever a vida de Santo Hilarião, invoco o Espírito Santo que habitou nele para que, assim como lhe concedeu o poder de realizar milagres, conceda a mim palavras para relatá-los, de modo que expressem adequadamente os fatos. Porque, como afirma Crispo, a virtude daqueles que realizaram obras é apreciada à medida que os grandes talentos os elogiam com palavras apropriadas.
       Alexandre Magno da Macedônia, a quem Daniel chamou trombeta, leopardo e cabra macho, quando chegou perante o túmulo de Aquiles, exclamou: "Feliz de ti, jovem, que tiveste a felicidade de encontrar um grande divulgador das tuas façanhas". Se referia, naturalmente, a Homero.
      Devo narrar a vida e as virtudes de um homem de forma que, se Homero vivesse hoje, invejaria o meu tema e sucumbiria ante sua magnitude.
Santo Epifânio, bispo de Salamina, no Chipre, que viveu muito tempo com Hilarião, escreveu suas façanhas em uma breve carta que é lida pelo povo; porém, uma coisa é aludir de modo geral a um morto e outra narrar os milagres operados pessoalmente por ele. Por isso, também nós, que empreendemos a obra iniciada por Epifânio – mais para honrá-lo que para ofendê-lo – não levamos em conta as palavras dos maledicentes que, em outro tempo, criticaram a minha "Vida de Paulo" e que, talvez, criticarão também a de Hilarião, pois reprovarão a vida solitária que afasta do mundo, de forma que, quem sempre permaneceu oculto foi considerado como inexistente e quem foi visto por todos [foi considerado] como insignificante. Isto mesmo seus predecessores fizeram em outro tempo, os fariseus, a quem não agradou nem o deserto, nem os jejuns de João, nem tampouco as multidões que acompanhavam o Senhor, nosso Salvador, nem o modo como comia e bebia.
      Por isso, coloco mãos à obra que me propus a fazer e seguirei adiante fazendo ouvidos surdos aos inimigos da cela.

A JUVENTUDE DE HILARIÃO E SUA ASCESE

       Uma rosa em meio aos gramáticos. Hilarião, nascido na aldeia de Tavata, situada a uns sete quilometros e meio de Gaza, cidade da Palestina, floresceu, segundo o provérbio, como uma rosa entre os espinhos, já que seus pais eram idólatras. Eles o enviaram para a Alexandria e o confiaram a um gramático; ali Hilarião, tendo em conta a sua idade, deu mostras do seu grande talento e bons costumes. Em pouco tempo, era amado por todos e chegou a ser bem versado na arte de falar. Porém, mais importante que tudo isto, é que acreditava no Senhor Jesus. Não se deleitava nas paixões do circo, nem no sangue da arena, nem na luxúria do teatro; todo seu afã era para participar das assembléias da Igreja.
       Com Antonio. Foi então que se viu diante do célebre nome de Antonio, elogiado por todo povo do Egito. Inflado pelo desejo de vê-lo, dirigiu-se ao deserto. Imediatamente depois de tê-lo visto, trocou suas antigas vestimentas e permaneceu com ele por quase dois meses. Observava seu modo de viver, a intensidade de seus costumes, sua assiduidade na oração, sua humildade na acolhida dos irmãos, sua severidade para corrigi-los, sua prontidão para exortá-los e como nenhuma debilidade quebrava sua continência e austeridade de alimentação. Porém, não podendo mais suportar as numerosas pessoas que procuravam Antonio em razão de seus mais diversos sofrimentos ou ataques dos demônios, considerou que não era conveniente suportar no deserto os habitantes das cidades. Devia, pois, começar como começou Antonio; este – pensava – recebia, como um homem forte, o prêmio da vitória, enquanto que ele, Hilarião, nem sequer havia começado sua batalha. Então voltou para sua pátria com alguns monges. Seus pais haviam falecido; deu parte dos seus bens a seus irmãos e outra parte aos pobres, não reservando absolutamente nada para si, recordando o exemplo e o castigo de Ananias e Safira narrado nos Atos dos Apóstolos. Recordava, sobretudo, a palavra do Senhor: “Aquele que não renuncia a tudo que possui não pode ser meu discípulo”. Tinha, então, quinze anos. Assim, nu mas armado em Cristo, entrou na solidão que se extende à esquerda do caminho que vai para o Egito pelo litoral, a quinze quilometros de Maiuma, que é o porto de Gaza. Ainda que esses lugares estivessem ensangüentados por causa dos bandidos e apesar das advertências de seus parentes acerca do gravíssimo perigo que corria, desprezou a morte para escapar da morte.
       No deserto de Maiuma.Todos se maravilhavam do valor e de sua pouca idade, porém, uma chama interior e um centelha de fé brilhava nos seus olhos. Sua bochechas eram coradas e seu corpo delicado e frágil; era incapaz de suportar as austeridades e, por isso, o faziam sofrer o calor e o frio, mesmo quando leves. Assim, cobertos seus membros apenas por panos de saco, com um capuchão de pele que lhe dera Antonio por ocasião da sua partida, e um manto rústico, vivia num vasto e terrível deserto entre o mar e o pântano. Comia apenas quinze figos após o pôr-do-sol e como a região tinha má-fama por causa dos bandidos, acostumou-se a não ficar sempre no mesmo lugar. O que poderia fazer o diabo? Para onde poderia ir? Aquele que se gloriava dizendo: “Subirei ao céu, colocarei meu trono sobre as estrelas do céu e serei semelhante ao Altíssimo” se via vencido e pisoteado por um menino antes que sua idade o permitisse pecar.
     Tentações e ascese. [O diabo,] então, atacava seus sentidos e sugeria ao seu corpo adolescente os costumeiros ardores da voluptuosidade. Assim, o soldado de Cristo se via obrigado a pensar naquilo que ignorava e a revolver seu espírito na pompa que não havia conhecido pela experiência. Irritado, pois, consigo mesmo e golpeando o peito com os punhos, como se pudesse expulsar os pensamentos com os golpes das suas mãos, dizia: “Burro! Não te deixarei dar coices, nem te alimentarei com cevada, mas com palha; te esgotarei de fome e sede, e irei te carregar com pesado fardo; te submeterei ao calor e ao frio para que penses mais no alimento que na concupiscência!”. Por isso, a cada dois ou três dias sustentava sua frágil vida com algumas ervas e uns poucos figos, orando e salmodiando com freqüência, trabalhando a terra com a enxada, para que a fadiga do trabalho redobrasse a dos jejuns. Depois, tecendo folhas de junco, praticava a disciplina dos monges do Egito e a sentença do Apóstolo que diz: “O que não trabalha não coma”. Estava tão fatigado, seu corpo tão consumido, que só sustentava os ossos.
        Alucinações. Uma noite ouviu o gemido de uma criança, o balar das ovelhas, o mugido de bois, os cânticos de prostitutas, os rugidos de leões, o ruído de um exército e um monstruoso clamor de vozes de todos os tipos, a ponto que quase cedeu àqueles sons, antes de ver o que os provocava. Compreendeu que eram armadilhas montadas pelos demônios e, ajoelhando-se, persignou sua fronte com o sinal da cruz. Armado com aquele elmo e envolto com a coraça da fé, prostrado na terra, lutava mais vigorosamente, desejando ver de alguma maneira aqueles que o aterrorizavam ouvir e, olhando ao seu redor, aqui e ali, com olhos ansiosos. De repente, sob a claridade da lua, viu precitar sobre ele um carro de cavalos de fogo. Invocou, em alta voz, o nome de Jesus e a terra se abriu imediatamente ante seus olhos e todo esse aparato foi tragado pelo abismo. Então disse: “Atirou ao mar o cavalo e seu cavaleiro” e “Uns confiam em seus carros, outros em sua cavalaria; nós, entretanto, invocamos o nome de nosso Deus”.
      Visões. Muitas e variadas foram as tentações e ciladas do demônio, tanto durante o dia quanto durante a noite. Se quisesse narrá-las todas, excederia os limites deste livro. Quantas vezes, enquanto deitado, se lhe apareceram mulheres desnudas; quantas vezes, enquanto com fome, viu suculentas refeições! Algumas vezes, enquanto orava, saltou sobre ele um lobo que uivava e um porco que granhia; e enquanto salmodiava, se lhe apresentava um espetáculo de lutas de gladiadores e um deles, que parecia ferido mortalmente, se arrastava até seus pés e lhe suplicava para que o sepultasse.
     O cavaleiro. Certa vez estava orando com a cabexa fixa na terra e, como é comum à natureza humana, sua mente se distraiu da oração, pensando em outra coisa. Então saltou sobre seus ombros um cavaleiro impetuoso que, golpeando-lhe as costas com suas botas e açoitando seu dorso com um chicote, gritou: “Ei, por que cochilas?” Depois disto, rindo muito, vendo-o desfalecer, lhe perguntou se desejava sua ração de cevada.
      A moradia. Dos dezesseis aos vinte anos, protejeu-se do calor e da chuva em uma pequena cabana levantada com juncos e folhas de figueira entrelaçados. Depois, teve uma pequena cela, que construiu e que permanece até hoje, de quatro pés de largura e cinco de altura, isto é, mais baixa que sua própria estatura e um pouco mais larga do que necessitava seu corpo. Podia ser considerada mais como sepulcro que como habitação.
     Gênero de vida. Cortava seu próprio cabelo uma vez ao ano, no dia de Páscoa; dormiu até sua morte sobre a terra desnuda, sobre uma esteira de juncos. Nunca lavou o tosco saco que vestia, dizendo que era dispensável buscar limpeza na sujeira. Tampouco trocou sua túnica por outra, a menos que a anterior estivesse quase reduzida a farrapos. Tendo aprendido de memória as Sagradas Escrituras, as recitava após as orações e os salmos, como se Deus estivesse ali presente. E como seria muito amplo descrever seu progresso espiritual em suas diversas etapas, momento a momento, resumirei brevemente apresentando o conjunto de sua vida perante os olhos do leitor e logo voltarei à ordem da narrativa.
     Alimentos. Desde os vinte e um anos, se alimentou, durante três anos, com meio sextário de lentilhas umedecidas em água fria, e, os próximos três anos, com pão seco, água e sal. Dos vinte e sete anos aos trinta e cinco anos, seu alimento consistiu em seis onças de pão de cevada e verduras pouco cozidas, sem azeite. Porém, quando sentiu que seus olhos se obscureciam e que todo o seu corpo queimado pelo sol se enrrugava coberto por uma crosta áspera como cascalho, acrescentou azeite ao alimento e, até os sessenta e três anos, seguiu praticando este regime de abstinência, não provando absolutamente nada mais, nem frutas, nem legumes, nem qualquer outra coisa. Então, vendo-se fatigado no corpo e pensando que se aproximava a morte, desde os sessenta e quatro anos até os oitenta, se absteve novamente de pão, impulsionado por um incrível fervor de espírito, próprio de quem se inicia no serviço do Senhor, numa época em que os demais resolveram viver menos austeramente. Como alimento e bebida, fazia uma sopa de farinha e verduras trituradas, que pesava apenas cinco onças. Cumprindo esta regra de vida, nunca rompeu o jejum antes do pôr-do sol, nem sequer nos dias de festa ou quando se encontrava gravemente doente. Porém, já faz hora de retornarmos ao relato normal.
     Os assaltantes noturnos. Quando tinha dezoito anos e ainda habitava sua pequena choupana, certa noite apareceram ladrões pensando que encontrariam algo para roubar. Assim, consideraram uma afronta que um anacoreta tão jovem não temesse seus ataques. Desde a tarde até o pôr-do-sol, sondaram o terreno entre o mar e os pântanos, sem poderem encontrar o lugar de seu refúgio. Finalmente, encontrando o rapaz ao nascer a luz do dia, lhe perguntaram ironicamente: “O que farias se ladrões o atacassem?”. Ele respondeu: “O que está nu não tem medo de ladrões”. Lhe disseram: “Mas certamente podemos te matar”. Disse ele: “Certamente que sim, mas, mesmo assim, não temo, porque estou preparado para morrer”. Os ladrões, admirados por sua firmeza e fé, confessaram seu extravio noturno e a cegueira dos seus olhos, e lhe prometeram que daquele dia em diante levariam uma vida mais honesta.

A PRIMEIRA SÉRIE DE MILAGRES

        A mulher sem filhos. Já estava há vinte e dois anos no deserto e sua fama era conhecida por todos, eis que difundida por todas as cidades da Palestina. Uma mulher de Eleuterópolis, a quem o marido desprezava em razão da sua esterilidade (durante quinze anos de matrimônio não foi capaz de produzir frutos), foi a primeira que se atreveu a apresentar-se diante de Hilarião e - sem que ele pudesse imaginar algo semelhante - repentinamente se atirou aos seus pés e lhe disse: “Perdoa o meu atrevimento, mas considera a minha necessidade. Por que afastas de mim os teus olhos? Por que foges de quem te suplica? Não me vejas como uma mulher, mas como uma aflita. O meu sexo gerou o Salvador; não são os sadios que precisam de médico, mas os doentes”. Finalmente, Hilarião lhe deu atenção – depois de tanto tempo sem ver mulher – e lhe perguntou o motivo da sua vinda e das suas lágrimas. Uma vez informando, levantou os olhos para o céu e a exortou a ter confiança e, em lágrimas, a despediu. Após um ano, teve um filho.
        Aristenete. O início de seus milagres se fez ainda mais célebre quando ocorreu outro ainda maior. Quando Aristenete, mulher de Helpídio (que depois foi prefeito do pretório), muito conhecida entre os seus e mais ainda entre os cristãos, regressava com seu marido e seus três filhos após ter visitado Santo Antonio, se deteve em Gaza por causa de uma enfermidade que os havia atacado. Ali, seja pelo ar contaminado, seja – como depois de manifestou – para a glória do servo de Deus, Hilarião, todos foram atacados ao mesmo tempo por febres altas e os médicos já não esperavam recuperação. A mão jazia, gemendo em alta voz, e ia de um filho a outro, semelhantes já a cadáveres, sem saber a qual chorar primeiro. Ouvindo dizer que no deserto próximo havia um monge, deixando de lado a sua fama de senhora respeitável – considerando apenas seu instinto materno – para lá se dirigiu acompanhada de donzelas e eunucos. Seu marido, a duras penas, conseguiu que efetuasse a viagem montada sobre um asno. Quando chegou à presença de Hilarião, lhe disse: “Em nome de Jesus, nosso misericordiosíssimo Deus, te conjuro por sua cruz e por seu sangue que me devolvas os meus três filhos e assim seja glorificado o nome do Senhor Salvador nesta cidade pagã. Que seu servo entre Gaza e Marnas seja destruído”. Ele resistia, dizendo que nunca saíra de sua cela e que não estava habituado a entrar nas cidades, nem sequer em uma aldeia. Ela, prostrada na terra, dizia várias vezes: “Hilarião, servo de Cristo, devolva-me os meus filhos. Antonio os teve em seus braços no Egito; salvai-os tu na Síria”. Todos os presentes choravam e ele também, negando, chorou. “Que mais posso dizer?”. A mulher não partiu enquanto ele não prometesse que entraria em Gaza após o pôr-do-sol. Quando chegou ali, fazendo o sinal da cruz sobre o leito de cada um e sobre os membros acometidos pela febre, invocou o nome de Jesus e – coisa admirável! – de imediato, o suor dos enfermos começou a brotar de três fontes. Então, nessa mesma hora, se alimentaram e, reconhecendo à sua mãe que chorava, beijaram as mãos do santo, bendizendo a Deus. Quando isto aconteceu e a notícia se espalhou por todos os cantos, se dirigiram a ele multidões da Síria e do Egito, de modo que muitos passaram a crer em Cristo e abraçaram a vida monástica. Todavia, não existia monastérios na Palestina e ninguém na Síria havia conhecido um monge antes de Hilarião. Ele foi o fundador e o primeiro mestre deste estilo de vida e desta ascese naquela província. O Senhor Jesus tinha no Egito o ancião Antonio e, na Palestina, o jovem Hilarião.
       Um cego vê. Facídia é um bairro de Rhinocorura, cidade do Egito. Dali levaram ao beato Hilarião uma mulher cega desde os dez anos de idade. Lhe foi apresentada por vários irmãos, muitos dos quais eram monges. Ela lhe disse que havia gasto todos os seus bens com médicos. Então ele lhe disse: “Se tivesses dado aos pobres o que perdeste com médicos, Jesus, o verdadeiro médico, te teria curado”. Como ela gritava pedindo misericórdia, ele tocou seus olhos com saliva e, em seguida, a exemplo do Salvador, ocorreu o milagre da cura.
      O cocheiro de Gaza. Também um cocheiro de Gaza, que ia sentado em sua carruagem, foi atacado por um demônio. Caiu completamente imóvel, a ponto de não poder mover as mãos nem dobrar os joelhos. Colocado sobre um leito e podendo apenas mover a língua para orar, ouviu o que lhe foi dito [por Hilarião]: que não poderia sarar se não cresse em Jesus e prometesse renunciar à sua antiga profissão. Ele creu, prometeu e foi curado; e se alegrou mais pela saúde da sua alma que da de seu corpo.
     Marsitas. Havia um jovem forte chamado Marsitas, do território de Jerusalém, que se gabava de possuir uma força tão grande que podia carregar durante muito tempo e por um longo caminho quinze módios de trigo. Se gloriava de possuir uma força superior à dos eqüinos. Estava possuído por um demônio muito mau e nada podia detê-lo: correntes, grilões, celas ou portas. Com suas mordidas, havia arrancado fora o nariz ou as orelhas de muitos. A um cortou os pés e a outros, a garganta. A tal ponto aterrorizava a todos que, amarrado com cordas e correntes o arrastaram ao monastério, como que a um touro enfurecido. Quando os irmãos o viram, cheios de terror – era um homem de extraordinário porte físico – avisaram o pai [Hilarião]. Este, permanecendo sentado, ordenou que o trouxessem e que o soltassem. Uma vez que o deixaram, lhe disse: “Inclina a cabeça e vem”. Ele começou a tremer e a dobrar o joelho, e nem sequer se atrevia a olhar Hilarião. Deposta sua ferocidade, começou a lamber os pés daquele que estava sentado. Assim, o demônio que havia possuído o jovem, exorcizado e castigado, saiu dele ao final de sete dias.
       Orión. Tampouco podemos nos calar no que se refere a Orión, homem importante e rico da cidade de Aila, situada junto ao mar Vermelho. Estava possuído por uma legião de demônios e foi conduzido a Hilarião. Suas mãos, joelhos, quadris e pés estavam acorrentados; seus olhos, torcidos e ameaçadores, expressavam a crueldade do seu furor. Enquanto o santo caminhava com os irmãos e lhes interpretava certa passagem da Escritura, aquele escapou das mãos que o sujeitavam e, tomando Hilarião pelas costas, o levantou às alturas. Um grande clamor brotou de todos, pois temeram que destroçasse seus membros debilitados pelo jejum. O santo, sorrindo, disse: “Fiquem tranqüilos; deixem-me na arena com o meu adversário”. E, assim, passando a mão sobre os seus ombros, tocou a cabeça de Orión e, tomando-o pelos cabelos, o trouxe até seus pés, retendo-o à sua frente, com ambas as mãos, e pisando os pés daquele com os seus pés. E repetia: “Retorce-te!”. E Orión gemeu e, ajoelhando-se, tocou o solo com sua cabeça. Hilarião disse: “Senhor Jesus: liberta este desgraçado, livra este cativo; assim como vences a um, podes vencer a muitos”. E ocorreu algo inaudito: da boca do homem saíram diversas vozes, como o clamor confuso de um povo. Uma vez curado, também este, pouco tempo depois, foi ao monastério com sua mulher e seus filhos, dar graças e levar muitos presentes. O santo, então, lhe disse: "Não leste sobre como sofreram Giezei e Simão, um por haver recebido e o outro por haver oferecido dinheiro? Aquele queria vender a graça do Espírito Santo; este outro, queria comprá-la”. E como Orión, chorando, insistia: “Toma e dá aos pobres”, Hilarião respondeu: “Tu podes distribuir teus bens melhor que eu, pois percorres as cidades e conheces os pobres. Eu, que abandononei o que era meu, por que vou desejar o alheio? Para muitos, o nome dos pobres é um ocasião de avareza; a misericórdia, ao contrário, não conhece artifícios. Ninguém dá melhor que aquele que não reserva nada para si”. Orión, entristecido, jazia em terra. Hilarião, então, lhe disse: “Filho, não te entristeças! O que faço por mim, faço também por ti. Se aceitasse esses presentes, ofenderia a Deus e a legião de demônios voltaria para ti”.
      O paralítico de Maiuma. E como silenciar o que diz respeito a Zanano de Maiuma? Enquanto cortava pedras retiradas da orla do mar, não muito distante do monastério de Hilarião, para uma construção, foi atacado por uma paralisia em todos os seus membros. Seus companheiros de trabalho o conduziram ao santo. Sarou imediatamente e pôde retornar à sua obra. A costa que se extende da Palestina ao Egito, suave por sua natureza, se torna áspera em razão da areia que se endurece como pedra, tornando-se paulatinamente mais sólida. Então deixa de ser areia para o tato, ainda que continue conservando tal aparência.
     Itálico, criador de cavalos. Itálico, cidadão cristão da mesma localidade, criava cavalos para o circo, competindo com um magistrado romano de Gaza, que era adorador do ídolo Marnas. Nas cidades romanas se conservava, desde os tempos de Rômulo, a recordação do rapto das Sabinas, que fôra bem sucedido. Os cavaleiros, dirigindo carroças com quatro cavalos, percorrem sete vezes o circuito em honra de Conso, o deus dos conselhos. A vitória consiste em eliminar os cavalos do adversário. Como seu rival tinha um feiticeiro que, com seus encantamentos demoníacos, freava os cavalos daquele e estimulava a correr seus próprios cavalos, Itálico foi ver Hilarião e lhe suplicou não tanto para prejudicar ao adversário, mas para proteger seus animais. Ao venerável ancião não lhe pareceu razoável orar por um motívo tão fútil. Sorriu e lhe disse: “Por que não dás aos pobres o preço da venda dos teus cavalos, para a salvação da tua alma?”. Ele respondeu que se tratava de um emprego público que realizava não por vontade própria, mas por obrigação. Como cristão, não podia empregar artes mágicas, mas podia pedir ajuda a um servo de Cristo, especialmente contra os habitantes de Gaza, inimigos de Deus, que insultavam não tanto a ele como a Igreja de Cristo. A pedido dos irmãos que se encontravam presentes, Hilarião ordenou que enchessem de água o vaso de terracota em que ele costumava beber e o dessem àquele homem. Itálico o levou e roçou com ele o estábulo, os cavalos e seus cocheiros, o coche e as celas do recinto. Era extraordinária a expectativa do povo. O adversário ironizava, satirizando esse gesto, mas os partidários de Itálico exultavam, prometendo uma vitória segura. Dado o sinal, uns correram rapidamente enquanto que outros [, os do magistrado,] foram impedidos. Sob o coche daqueles, as rodas ardiam; estes, por outro lado, viam apenas o afastamento daqueles, que se adiantavam como se estivessem voando. Então se elevou um grandiosíssimo clamor entre a multidão, ao ponto que também os pagãos gritaram: “Marnas foi vencido por Cristo”. Os adversários de Hilarião, furiosos, pediram para que este, como feiticeiro dos cristãos, fosse levado ao suplício. A vitória indiscutível daqueles jogos de circo e os outros feitos precedentes foram ocasião para que um grande número de pagãos abraçassem a fé.
      Uma jovem libertada de um encantamento mágico. Um jovem do mesmo mercado de Gaza, amava perdidamente uma virgem de Deus que morava ali perto. Não havia tido êxito nem com suas freqüentes bajulações, nem com seus gestos e assobios, nem outras coisas semelhantes que podem ser o começo para a morte da virgindade. Então foi a Mênfis para revelar sua ferida de amor, regressar e ver a donzela caída por artes mágicas. Depois de um ano, instruído pelos sacerdotes de Esculápio - que não curam as almas mas as perdem - retornou com o propósito de estuprá-la, como havia antecipado em sua imaginação. Enterrou sob o umbral da casa da donzela certas palavras e figuras estranhas gravadas sobre uma mina de bronze do Chipre. De repente, a virgem enlouqueceu, arrancou o véu, soltou os cabelos e, rangendo os dentes, chamava o jovem aos gritos. A veemência do amor havia se convertido em loucura. Então foi levada por seus pais ao monastério e recomendada ao ancião. O demônio uivava e declarava: “Sofri violência! Fui trazido aqui contra a minha vontade! Com meus sonhos enganei os homens em Mênfis! Quantas cruzes, quantos tormentos estou sofrendo! Me obrigas a sair, porém estou preso sob o umbral! Não posso sair se não me soltar o jovem que me retém!”. Então o ancião lhe disse: “Grande é a tua força por te reterdes em troca de um cordão de uma mina! Diz-me: por que te atreveste a entrar em uma donzela consagrada a Deus?”. Respondeu aquele: “Para conservá-la virgem”. [Disse Hilarião:] “Irás conservá-la? Tu, inimigo da castidade? Por que não entraste naquele que te enviou?”. Porém, ele respondeu: “Por que iria entrar nele, se ele já tem um colega meu, o demônio do amor?”. O santo quis purificar a virgem antes de mandar buscar o jovem e seus objetos mágicos. Assim não pareceria que o demônio só se retiraria porque os encantamentos foram pagos ou porque se dera crédito às palavras do demônio, justamente ele que assegurava que os demônios são mentirosos e astutos em fingimento. Por isso, depois de devolver a saúde à virgem, a repreendeu ásperamente por ter feito algo que permitiu ao demônio entrar nela.
        Um oficial de Constâncio libertado. A fama do santo se havia espalhado não apenas pela Palestina e cidades vizinhas do Egito e Síria, mas já chegara às províncias afastadas. Um oficial do Imperador Constâncio, que pela cabeleira ruiva e brancura de seu corpo indicava a província de onde provinha (seu povo natal está situado entre os saxões e os alemães, região não tão extensa quanto forte, chamada Germânia pelos historiadores e, agora, França), há muito tempo, desde sua infância, estava possuído por um demônio que o obrigava a gritar durante a noite, a gemer e a ranger os dentes. Em segredo, pediu ao imperador um salvo-conduto para ver o ancião, indicando cuidadosamente o motivo. Também recebeu cartas para o governador da Palestina e foi conduzido a Gaza com grande honra e escolta. Quando perguntou aos decuriões desse lugar onde habitava o monge Hilarião, os cidadãos de Gaza ficaram aterrorizados, pensando que havia sido enviado pelo imperador. O levaram ao monastério para honrar ao emissário e, deste modo, se em algo tinham ofendido a Hilarião, com este gesto se desculpariam. Neste momento, o ancião passeava pelas areias suaves, murmurando para si os versos de algum salmo. Ao ver tanta gente que se aproximava, se deteve, saudou a todos e os abençoou com a mão. Depois de uma hora, despediu aos outros, que se foram, e disse ao visitante que ali ficasse com seus servidores e guardas. Pela expressão dos seus olhos e do seu rosto, compreendeu o motivo da sua vinda. De imediato, ante a pergunta do servo de Deus, o homem foi elevado ao alto, de modo que apenas tocava a terra com os pés, e, com um fortíssimo rugido, respondeu na língua síria, na qual foi interrogado. Viu-se sair da boca daquele bárbaro - que só conhecia a língua franca e a latina - palavras sírias com uma pronúncia bem pura. Não faltavam os estridores, nem as aspirações, nem nenhuma outra característica da linguagem palestinense. O demônio confessou de que modo havia entrado nele e, para que pudessem compreender os intérpretes, que só conheciam o grego e o latim, Hilarião também o interrogou em grego. Ele respondeu e fez alusão aos numerosos ritos de encantamento e procedimentos infalíveis das artes mágicas. Hilarião lhe disse: “Não me interessa saber como entraste, porém te ordeno que saias em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Quando foi curado, o bárbaro ofereceu, com ingenuidade, dez libras de ouro. Ele recebeu de Hilarião um pão de cevada e o ouviu dizer que quem comia desse pão considerava o ouro como barro.
      Animais curados. Porém, não basta falar dos homens. Todos os dias levavam até ele animais furiosos. Por exemplo: um dia levaram-lhe um camelo de enorme tamanho, conduzido por mais de trinta homens e amarrado com fortes cordas, em meio a grandes gemidos. Já havia pisoteado a muitos. Seus olhos estavam cheios de sangue, saía espuma da sua boca e movia a língua inchada. Porém, o que atemorizava mais era o barulho dos seus ferozes rugidos. O ancião ordenou que o desamarrassem. Imediatamente, tanto os que haviam trazido [o animal], como os que estavam com o ancião, fugiram, sem exceção, para todas as direções. Então ele avançou ao encontro do animal e lhe disse: “Diabo, não me assustas com esse teu imenso corpo. Em uma raposa ou em um camelo, és sempre o mesmo”. E assim se mantinha firme, com a mão estendida. Quando a besta, furiosa, se cercou dele como que para devorá-lo, subitamente desaprumou e caiu com a cabeça sobre a terra. Todos os presentes se maravilharam ao ver tão repentina mansidão, após tanta ferocidade. O ancião os ensinava que, para prejudicar os homens, o diabo atacava também os animais domésticos; que nutria um ódio tão grande contra os homens que queria fazê-los perecer, não apenas eles, como também suas posses. Para ilustrar isto, propunha o exemplo de Jó: antes de obter a permissão para tentar [o homem], o diabo havia destruído todos os seus bens. E a ninguém devia perturbar o fato de que, por ordem do Senhor, dois mil porcos foram aniquilados pelos demônios. De outro modo, os que presenciaram esse fato não teriam acreditado que uma tal multidão de demônios pudesse sair de um só homem, se não vissem com seus próprios olhos, semelhante quantidade de porcos precipitando-se ao mar, ao mesmo tempo.

PREOCUPAÇÃO PASTORAL E ÊXODO

        Antonio honra a Hilarião. Me faltaria tempo se quisesse narrar todos os milagres realizados por ele. O Senhor o havia elevado a tão alta glória que o bem-aventurado Antonio, ouvindo acerca do seu modo de vida, lhe escreveu e, com grande prazer, recebia suas cartas. Quando iam a ele doentes das regiões da Síria, lhes dizia: “Por que se preocupam em vir de tão longe quando têm ali o meu filho Hilarião?”. Seu exemplo fez com que surgissem inúmeros monastérios em toda Palestina e os monges acorriam em grande número até ele. Ao ver isto, Hilarião exaltava a graça de Deus e exortava a cada um a trabalhar em proveito de sua própria alma, dizendo-lhes que a aparência deste mundo passa e que a verdadeira vida é a que se obtém à custa de sofrimentos na vida presente.
       Hilarião visita os monastérios. Querendo dar exemplo de humildade e deferência, Hilarião visitava as celas dos monges em dias estabelecidos, antes da vindima. Quando os irmãos se inteiravam disto, todos acorriam a ele e, em companhia de semelhante guia, recorríam aos monastérios, levando seus próprios víveres porque às vezes se reuniam dois mil homens. Com o passar do tempo, cada aldeia começou a oferecer com alegria alimento aos monges estabelecidos, para que pudessem acolher aqueles santos. Quanto foi seu zelo para que não se descuidasse a nenhum de seus irmãos, por mais humilde ou pobre que fosse, se pode deduzir disto: enquanto se dirigia ao deserto de Cades, para visitar a um de seus discípulos, chegou a Elusa com uma imensa multidão de monges, no dia em que as celebrações anuais reuniram no templo de Vênus toda a população da cidade. Se adora a essa deusa em razão de Lúcifer, a cujo culto foi dedicado aquele povo de sarracenos. A mesma cidade é, em grande parte, semi-bárbara, por causa de sua situação geográfica. Assim, quando souberam que Santo Hilarião passava por ali, como ele havia curado a muitos sarracenos atacados pelo demônio, todos juntos saíram ao seu encontro, acompanhados por suas mulheres e filhos, inclinando suas cabeças e gritando em língua síria: “Barech”, que quer dizer: “Abençoa-nos”. Ele, recebendo-os com doçura e humildade, lhes rogava para que adorassem a Deus e não às pedras e, ao mesmo tempo, chorava copiosamente, olhando para o céu, assegurando-lhes que viria vê-los mais tarde, se cressem em Cristo. Ó admirável graça do Senhor: não o deixaram partir antes que traçasse o plano de uma futura igreja e que seu sacerdote, já marcado com a coroa, fosse também assinalado com o sinal de Cristo.
       O monge ávaro. Outro ano, quando ia sair para visitar as celas, anotou em uma folha em quais se deteria e em quais passaria sem se deter. Os monges sabiam que um dos irmãos era ávaro e desejando curá-lo desse vício, lhe rogaram para que se detivesse com ele. Hilarião lhes disse: “Por que querem prejudicar-se a vós mesmos e molestar o irmão?”. Quando o irmão ávaro ouviu estas palavras, ficou vermelho, mas, apoiado pela insistência de todos e com grande trabalho, conseguiu que Hilarião incluísse sua cela na lista de visita. Dez dias depois, chegaram até ele. Tinha colocado guardas na vinha, como se tratasse de uma granja. Os guardas afastaram todos os que tentaram se aproximar, jogando pedras e bolas de terra, além de atirar com estilingues, de forma que todos partiram pela manhã sem poder comer uvas, enquanto que o ancião, rindo, aparentava não ter se dado conta do que ocorrera.
     Sabas, o monge generoso. Logo foram recebidos por outro monge, chamado Sabas – omitimos o nome do ávaro e apresentamos o do generoso. Como era Domingo, convidou a todos para a vinha, para que, antes de comerem, pudessem se aliviar com as uvas da fadiga do caminho. Porém, o santo disse: “Maldito o que se preocupa com a refeição do corpo antes da que é devida à alma! Oremos, cantemos salmos, tributemos honra ao Senhor e somente depois iremos à vinha”. Terminado o serviço divino, estando de pé em um lugar elevado, abençoou a vinha e ao rebanho que alimentaria a todos. Os que comeram não eram menos de três mil. A produção da vinha, que enquanto ainda estava intacta, fôra estimada em cerca de cem garrafas, após vinte dias produziu trezentas. Em contrapartida, o irmão ávaro obteve algo bem menor e o pouco que recolheu logo se converteu em vinagre. Demasiado tarde se lamentou! O ancião havia predito a muitos irmãos que seria assim que se sucederia.. Hilarião detestava, sobretudo, os monges que, pela pouca fé, reservavam parte de seus bens para o futuro e se preocupavam com gastos, vestimentas ou qualquer outra coisa que passa junto com o mundo.
       Um irmão demasiadamente cauteloso. Neste sentido, havia se afastado de um irmão que vivia cerca de cinco milhas, pois ficou sabendo que cuidava da sua horta com excessiva preocupação e temor, e porque guardava algum dinheiro. Como queria se reconciliar com o ancião, visitava aos irmãos com freqüência, principalmente a Hesíquio, a quem Hilarião amava muito. Um dia levou um maço de favas frescas, que já estavam maduras. Quando Hesíquio as pôs, mais tarde, sobre a mesa, o ancião, que havia ido visitá-lo, exclamou que não podia suportar aquele odor e perguntou de onde provinham. Hesíquio lhe respondeu que um irmão havia trazido as primícias de sua horta para os irmãos. Então o ancião lhe disse: “Não sentes esse odor espantoso? Não sentes nas favas o odor da avareza? Atirai-as aos bois, aos animais irracionais e observa se as comem!”. E ele, segundo a ordem, as deu para os animais. Então os bois, aterrados e mugindo mais forte que o costume, romperam suas cadeias e fugiram em todas as direções. O ancião Hilarião tinha a graça de saber, pelo odor dos corpos, dos vestidos e das coisas que alguém havia tocado, a que demônio ou vício estava submetido.
        Nostalgia do passado e morte de Santo Antonio. Tendo alcançado os sessenta e três anos de idade e vendo como havia se expandido as suas celas e a multidão dos irmãos que habitavam com ele e a quantidade de enfermos e possessos de todos os tipos que lhe levavam, chorava todos os dias e recordava com incrível nostalgia seu anterior estilo de vida. O deserto circunvizinho estava habitado por gente de todo tipo. Quando os irmãos lhe perguntaram o que estavava acontecendo e por que estava tão abatido, lhes respondeu: “Retornei ao mundo e já recebi a minha recompensa em vida. Os homens da Palestina e das províncias vizinhas me consideram uma pessoa importante e, com o pretexto de prover as necessidades dos irmãos e das celas, possuo utensílios supérfluos”. Os irmãos cuidavam dele, especialmente Hesíquio, que com admirável amor se havia entregue à veneração do ancião. Viveu assim chorando durante dois anos, quando foi ver aquela Aristenete, que já mencionamos acima, esposa do prefeito, porém que nada tinha em comum com ele. Ela tinha a intenção de ir visitar Antonio. Hilarião, chorando, lhe disse: “Eu também gostaria de ir. Só não irei porque estou encerrado no cárcere destas celas e não vejo sentido em fazê-lo, já que há dias que o mundo está órfão desse padre”. Ela acreditou e não prosseguiu a viagem; poucos dias depois chegou a notícia de que Antonio havia adormecido no Senhor.

PEREGRINAÇÃO, MORTE E AFINS

      Hilarião vai para o Egito. Que outros admirem os milagres e portentos que fez; que admirem sua incrível abstinência, ciência, humildade; enquanto a mim nada me assombra tanto como que haja podido pisotear a glória e a honra. A ele acudiam bispos, presbíteros, grupos de clérigos e monges, também nobres damas cristãs – terrível tentação – e, de um ou outro lugar das cidades e do campo, as pessoas de condição humilde, bem como homens poderosos e altos magistrados, para receber pão ou azeite bentos. Porém ele não pensava em nada além da solidão, ao ponto de que um dia decidir partir e, fazendo uso de um asno – já que estava muito consumido pelos jejuns, mal podendo caminhar – tentou pôr-se a caminho. Quando se soube disso, como se houvesse anunciado no Palestina uma calamidade ou luto público, se congregaram mais de dez mil homens de diversas idades e sexos para retê-lo. Ele permanecia inflexível ante as súplicas e, removendo a areia com seu báculo, lhes disse: “Não posso mentir ao meu Senhor. Não posso ver as Igrejas destruídas, os altares de Cristo pisoteados, o sangue dos meus filhos”. Todos os presentes compreenderam que revelara um segredo que não queria manifestar. Contudo, o vigiavam para que não partisse. Então, chamando a todos por testemunhas, afirmou publicamente que não comeria nem beberia nada se não o deixassem partir. Depois de sete dias de abstinência, finalmente foi liberado e, deixando saudades a muitos, partiu. Chegou a Betélia com uma multidão de acompanhantes. Ali convenceu ao povo que regressaria e elegeu uns quarenta monges que, levando algumas provisões, puderam seguí-lo adiante. No quinto dia, chegou ao Pelúsio e, depois de ter visitado aos irmãos que estavam no deserto vizinho e viviam em Lykonos, caminhou três dias até o forte de Taubasto, para poder ver a Dracôncio, bispo e confessor que estava ali desterrado. Graças a essa visita, foi incrivelmente consolado com a presença de um homem tão magno. Então, mais três dias de grande fadiga e chegou à Babilônia, para ver o bispo Filón, confessor ele também. O imperador Constâncio, que favorecia a heresia dos arianos, havia deportado ambos para aqueles lugares. Partiu dali três dias e chegou à cidade de Afroditón, onde encontrou o diácono Besano, o qual ajudava aos que iam ver Antonio, cedendo dromedários, em razão da pouca água existente no deserto. Hilarião revelou aos irmãos que se aproximava o dia do aniversário da morte do bem-aventurado Antonio e que devia celebrar a vigília noturna no mesmo lugar em que havia falecido. Portanto, durante três dias, atravessaram aquela vasta e terrível solidão até chegar a um monte altíssimo, onde encontraram dois monges: Isaac e Peluso. Isaac fôra o intérprete de Antonio.
     Sobre Antonio. Já que se apresenta a ocasião e tocamos nesse tema, nos parece justo descrever brevemente a habitação deste homem tão magno. Um monte rochoso e muito alto deixa correr as águas divididas em braços até sua base. Algumas delas se submergem na areia e outras, correndo para baixo, formam um riacho em cujas orlas crescem inumeráveis palmeiras que tornam o lugar muito agradável e acolhedor. Aqui o ancião foi visto correndo daqui para lá com os discípulos do bem-aventurado Antonio. Diz-se: “Aqui salmodiava, orava e trabalhava; aqui descansava quando estava fatigado. Estas vinhas e estes arbustos foram plantados por ele; este horto foi criado com suas próprias mãos; este tanque para regar a pequena horta foi construído por ele mesmo, com muito esforço; esta pá lhe serviu durante muitos anos para cavar a terra”. Hilarião deitava-se sobre a cama de Antonio e beijava esse leito como se ainda estivesse quente. A pequena cela, com seus quatro lados, não media mais que o corpo de um homem deitado para dormir. Ademais, no cume altíssimo do monte, até onde subiram por um caminho muito escarpado em forma de caracol, viram duas celas das mesmas medidas, nas quais Antonio ficava quando queria fugir da freqüência dos visitantes e da companhia dos seus discípulos. Estavam cavadas na rocha e nelas só se acrescentaram as portas. Uma vez chegados à horta, disse Isaac: “Vêem estas árvores frutíferas e estas hortaliças verdes? Há três anos, quando uma manada de asnos selvagens as devastou, ordenou a um dos que ia à frente para que parasse e, golpeando-lhe as costas com seu bastão, disse-lhe: ‘Por que comem o que não plantaram?’. Desde então, com exceção da água que vinham beber, nunca mais tocaram em nada, nem nas frutas, nem nas hortaliças”. O ancião pediu também para que lhe mostrassem o lugar da sepultura de Antonio. Eles o levaram à parte, não sabemos se a mostraram ou não; mas disseram-lhe que, segundo ordem de Antonio, deviam esconder o lugar de seu sepultamento para impedir que Pergâmio, a pessoa mais rica daquela região, levasse para a sua cidade o corpo de santo e construísse um santuário sobre o seu túmulo.
   Hilarião obtém a chuva. Logo, tendo regressado a Afroditón, permaneceu no deserto vizinho, mantendo consigo apenas dois irmãos, observando tanta abstinência e silêncio que logo – segundo se dizia – passaram a servir a Cristo. Fazia três anos que o céu permanecia fechado e tornara áridas essas terras, de forma que as pessoas diziam que também a natureza chorava a morte de Antonio. A fama de Hilarião não permaneceu oculta aos habitantes daquele lugar e, insistentemente, homens e mulheres com rostos sofridos e consumidos pela fome, pediam chuva ao servo de Cristo, ou seja, o sucessor do bem-aventurado Antonio. Hilarião, ao vê-los, se comoveu profundamente e, elevando os olhos para o céu e alçando as mãos para o alto, imediatamente obteve o que eles imploravam. E eis que aquela região sedenta e arenosa, depois que foi regada pelas chuvas, se viu, de improviso, inundada por tal multidão de serpentes e animais venenosos que muitos foram atacados e, se não fossem acudidos imediatamente por Hilarião, teriam perecido. Com efeito, todos os camponeses e pastores, tocando suas feridas com óleo bento, obtiveram a cura.
       Perseguido pelas autoridades. Vendo que também aqui recebia grandes honras, partiu para a Alexandria. Dali atravessou o deserto até um oásis mais interior e, assim como no começo de sua vida monástica, em que nunca permaneceu em uma cidade, se desviou para ir hospedar-se com uns irmãos, seus conhecidos, em Bruquios, não tão próximo da Alexandria. Estes receberam o ancião com imensa alegria. Quando se aproximava a noite, de repente os discípulos ouviram que estava preparando o asno para partir. Então, atirando-se aos seus pés, lhe rogaram para que não fosse, e prostrados no umbral, declararam que preferiam morrer a ver-se privados de tal hóspede. Ele lhes respondeu: “Apresso-me a partir para não lhes cauar moléstia. Logo compreenderão o que se sucederá, pois não saio daqui sem um motivo”. Com efeito, no dia seguinte, os prefeitos de Gaza, acompanhados pelos líctores – que ficaram sabendo que Hilarião havia chegado no dia anterior – entraram nas celas e, ao não encontrarem-no, diziam uns para os outros: “Não é verdade o que tínhamos ouvido? É um mago e conhece o futuro”. Assim que Hilarião deixou a Palestina, Juliano havia tomado o poder [imperial]. Os cidadãos de Gaza destruíram sua cela e, depois de solicitá-lo ao imperador, obtiveram a pena de morte para Hilarião e Hesíquio. E foi dada ordem para que fossem procurados em toda a terra.
      Adriano, o falso irmão. Assim, depois de deixar Bruquios, Hilarião atravessou o deserto sem caminhos e entrou no oásis. Nesse lugar ficou por cerca de um ano, mas seu renome também o acompanhara. Parecia que já não podia permanecer oculto no Oriente, onde muitos haviam ouvido falar dele ou de sua fama; por isso, pensava em navegar para ilhas solitárias, para que pelo menos os mares pudessem ocultar aquele a quem a terra fizera célebre. Nesse tempo, chegou da Palestina seu discípulo Adriano, anunciando que Juliano tinha morrido e começara a reinar um imperador cristão, razão pela qual Hilarião deveria regressar às ruínas de suas celas. Ele, porém, ao ouvi-lo, recusou e conseguindo um camelo, viajou pelo desolado deserto e chegou a uma cidade portuária da Líbia: Paretônio. Ali o infeliz Adriano, que queria regressar à Palestina e buscava a glória amparando-se no nome de seu mestre, lhe inflingiu muitas injúrias. Finalmente, fez um pacote com o que lhe haviam enviado os irmãos e partiu sem que ele o soubesse. Como não haverá outra ocasião para falar de Adriano, quero dizer apenas isto para inspirar horror naqueles que depreciam os seus mestres: pouco tempo depois, morreu acometido pela podridão da lepra.
    Um demônio em alto-mar. O ancião, tendo Zanano por companheiro, embarcou em um navio que se dirigia para a Sicília. Tinha a intenção de pagar a viagem vendendo um códice dos Evangelhos que transcrevera em sua juventude. Porém, sucedeu que, no meio do mar Adriático, o filho do proprietário do navio, possuído por um demônio, começou a gritar: “Hilarião, servo de Deus, por tua culpa não estamos tranqüilos nem sequer em alto-mar. Dá-me tempo para chegar em terra, de modo que não seja expulso daqui e me veja precipitado no abismo”. Hilarião lhe respondeu: “Se meu Deus te concede permanecer, submeta-te; porém, se te expulsa, por que o faria por mim, que sou um homem pecador e mendigo?”. Dizia isto para que os navegantes e comerciantes que estavam na embarcação não o dessem a conhecer quando chegassem em terra. Em seguida, o rapaz foi purificado e tanto o pai como os presentes asseguraram a Hilarião que não revelariam o seu nome a ninguém.
      Hilarião, verdadeiro pobre. Quando entraram em Paquino, promontório da Sicília, [Hilarião] ofereceu ao proprietário do navio o Evangelho, como preço de sua viagem e de Zanano. Porém, aquele não quis aceitar, sobretudo vendo que eles somente tinham aquele códice e a roupa que vestiam. Jurou que não aceitaria. O ancião aceitou, com a consciência certa de que efetivamente era pobre e se alegrava principalmente por isso, porque não tinha nenhum bem neste mundo e era considerado como mendigo pelos habitantes do lugar.
      Milagres na Sicília. Porém, logo, temendo que os comerciantes que vinham do Oriente o dessem a conhecer, fugiu para o interior, isto é, a vinte milhas do mar e, ali, em um campo solitário, recolhia todo dia um haz de lenha e o colocava sobre o ombro de seu discípulo. Vendia a lenha na aldeia vizinha e comprava alimento para ambos e um pouco de pão para os que vinham visitá-los. Contudo, como é verdade o que está escrito: “Não pode permanecer oculta uma cidade situada no alto de uma colina”, quando um soldado da guarda estava sendo exorcizado na basílica de São Pedro, o espírito imundo que estava nele gritou: “Há poucos dias, chegou na Sicília o servo de Cristo, Hilarião. Ninguém o reconheceu e ele pensa que poderá permanecer oculto, mas eu irei para lá desmascará-lo”. Imediatamente, tomou um navio no porto com seus servos e desembarcou em Paquino. E guiado por seu demônio, foi prostrar-se diante da choupana do ancião e foi imediatamente curado. Este foi o começo de seus milagres na Sicília. Isto fez com que, em seguida, o procurassem uma considerável multidão de enfermos e pessoas piedosas, entre eles um dos cidadãos mais renomados, inchado pela hidropesia, que foi curado no mesmo dia em que foi ver Hilarião; depois, lhe ofereceu uma grande quantidade de regalos, mas escutou o que o Salvador havia dito aos seus discípulos: “De graça recebestes, de graça dai”.
      Hesíquio se reencontra con Hilarião. Embora ocorressem essas coisas na Sicília, seu discípulo Hesíquio o procurava por todo o mundo, recorrendo às costas, entrando nos desertos e possuindo apenas esta certeza: onde quer que estivesse Hilarião, não permaneceria oculto por muito tempo. Três anos mais tarde, em Metone, ouviu de um judeu que vendia objetos e roupas à população, que na Sicília havia aparecido um profeta aos cristãos que operava tantos milagres e prodígios como ocorria com os antigos santos. Hesíquio o interrogou acerca de seu aspecto, seu modo de caminhar, sua linguagem e, sobretudo, sua idade, mas não pôde constatar nada. O homem declarava que apenas sabia da fama desse homem. Tendo entrado no Adriático, após uma rápida viagem, Hesíquio desembarcou no Paquino e, ao pedir notícias sobre o ancião em uma aldeia situada na baía da costa, se inteirou, pelas respostas unânimes de todos, onde estava e o que fazia. O que mais admirava a todos era que depois de tão grandes prodígios e milagres, nunca aceitara de nenhum dos habitantes desses lugares nem sequer um pedaço de pão. E para não me estender em demasia, termino dizendo que aquele santo homem Hesíquio se arremessou aos joelhos do seu mestre e lhe banhou os pés com suas lágrimas, até que este, finalmente, o levantou. Depois de dois ou três dias de colóquio, escutou dizer a Zanano que o ancião já não podia viver nessas regiões e que queria ir para certas nações bárbaras, onde fossem desconhecidos seu nome e sua fama.
      Passagem pela Dalmácia. O conduziu, então, a Epidauro, cidade da Dalmácia, onde permaneceu uns poucos dias em um campo que cerca a cidade; porém, tampouco ali pôde permanecer oculto. Uma serpente imensa, que na região é chamada de “boas” – porque é tão grande que pode comer um boi – devastava toda a província e devorava não apenas o gado e as ovelhas, mas também aos camponeses e pastores após privá-los, com sua força, da respiração. Hilarião ordenou que preparassem uma fogueira para a serpente e, depois de chamá-la, orou a Cristo. Então mandou que subisse no monte de lenha e o fogo a prendeu. Assim, ante os olhos de todo o povo, queimou a enorme besta. Depois Hilarião perguntou: “Que fazer? Para onde ir?”. E preparou outra fuga. Sonhava com terras solitárias e se afligia ao ver seu silêncio traído por seus milagres portentosos.
        Um maremoto acalmado. Naquele tempo, em razão de um terremoto que atingiu todo o mundo após a morte de Juliano, os mares saíram dos seus limites e, como se Deus ameaçasse com um novo dilúvio e as coisas retornassem ao antigo caos, os navios foram arrastados para os cumes das montanhas e ali ficaram dependurados. Quando os habitantes de Epidauro viram as ondas ameaçadoras, o corpo maciço de água e os imensos redemoinhos avançando até a costa, temerosos de que a cidade fosse destruída até as bases – o que davam por certo – entraram na morada do ancião e, como se partissem para uma batalha, o levaram até a costa. Traçou três sinais da cruz sobre a areia e extendeu as mãos sobre as ondas. Parecia incrível a que altura se inchara o mar e como se deteve perante ele. Então, como se temesse um grande rato e como que indignado perante tal obstáculo, o mar, pouco a pouco, retornou para o seu lugar. Os camponeses de Epidauro e toda a região o celebram ainda hoje e as mães contam para seus filhos, para que transmitam essa recordação aos seus descendentes. Na verdade, o que se disse aos Apóstolos: “Se cressem, diriam a este monte: ‘atira-te ao mar’, e assim se sucederia”, pode cumprir-se também literalmente se alguém guarda a fé dos Apóstolos, tal como o Senhor ordenou. Que importa se é o monte que desce ao mar ou que uma imensa montanha de água se endureça subitamente e se mantenha firme diante dos pés do ancião, ainda que volte mansamente para trás?
     No Chipre. Toda a cidade estava admirada e o extraordinário milagre foi divulgado também na Salona. Ao saber disso, o ancião fugiu ocultamente durante a noite em uma pequena embarcação e, encontrando depois de dois dia um navio cargueiro, se dirigiu para o Chipre. Entre Malea e Citera, uns piratas, deixando na costa parte de seus navios, que não usavam velas mas remos, saíram ao encontro [do cargueiro] em duas embarcações velozes e pequenas, e passaram a golpear com os remos e agitar de um e outro lado. Os que estavam no no navio começaram a tremer e chorar, correndo daqui e dali. Prepararam furos e, como se um só não bastasse para dar a notícia, todos juntos anunciaram ao ancião a presença dos piratas. Ele os viu de longe, sorriu e voltando-se para os seus discípulos, lhes disse: “Homens de pouca fé, por que temem? Acaso esses são mais numerosos que o exército do faraó? E, mesmo assim, todos foram submersos quando Deus quis”. Enquanto Hilarião assim falava, as embarcações inimigas se aproximavam, podendo-se já ver as caras exaltadas quase à distância de meio tiro de pedra. Ele se pôs de pé na proa do navio e, com a mão estendida contra os que se aproximavam, disse: “Basta terem chegado até aqui!” E coisa maravilhosa e incrível! Imediatamente as embarcações retrocederam e tomaram a direção oposta, mesmo com os remos se movimentando no sentido contrário. Os piratas se maravilharam de retroceder contra a sua vontade e, por mais que se empenhassem em atingir o navio [cargueiro], eram arrastados para a costa muito mais velozmente que em direção ao navio.
         Na cercania de Pafos. Omito todo o resto para que não pareça que quero prolongar o livro narrando milagres. Apenas direi que, navegando com vento favorável entre as Cícladas, ouviu de um e outro lado as vozes dos espíritos imundos que gritavam a partir das cidades e aldeias, e que se reuniam na praia. Pafos é uma cidade do Chipre famosa pelos cantos que lhe dedicaram os poetas. Foi destruída mais de um vez por terremotos e, ainda hoje, com suas ruínas, continua revelando o esplendor de outros tempos. Tendo entrado nela, Hilarião habitava a duas milhas da cidade, sendo desconhecido de todos e feliz por poder viver tranqüilo uns poucos de dias. Todavia, nem se passara vinte dias quando todas as pessoas da ilha que possuíam espíritos imundos começaram a gritar, dizendo que havia chegado Hilarião, o servo de Cristo, e que deviam acudir depressa até ele. Esses gritos ressoavam em Salamina, em Curio, em Lapeta e em todas as outras cidades. A maioria assegurava saber que se tratava de Hilarião e que era verdadeiramente um servo de Deus, porém, ignorava onde estava. Uns trinta dias depois, ou pouco mais, se reuniram em torno de si umas duzentas pessoas, homens e mulheres. Ao vê-las, se contristeceu por que não o deixavam tranqüilo e, por assim dizer, quis vingar-se um pouco sobre ele mesmo, e se voltou com todo fervor sobre estas importunações com uma oração tão insistente que alguns foram curados de imediato, outros depois de dois ou três dias, porém todos em menos de uma semana.
          Outra vez o deserto é invadido. Permaneceu ali dois anos, porém sempre pensou em fugir. Enviou Hesíquio para a Palestina, para que saudasse aos irmãos e visitasse as ruínas das celas, com ordem para que retornasse na primavera. Quando regressasse, Hilarião queria navegar novamente até o Egito, isto é, para aqueles lugares que chamavam Bucólia, porque ali não havia cristãos, mas apenas um povo bárbaro e feroz. Porém, Hesíquio o persuadiu a que permanecesse na ilha e que se retirasse para um lugar mais oculto. Quando depois de uma prolongada busca encontrou [esse lugar], conduziu Hilarião a doze milhas do mar, adiante, entre os montes solitários e ásperos, onde apenas se podia subir arrastando-se sobre as mãos e os pés. Quando chegou ali, Hilarião contemplou esse lugar verdadeiramente terrível e afastado, cercado de árvores por todas as partes. Havia também águas que corriam a partir do cume, uma pradaria muito agradável e muitas frutas, ainda que ele nunca tenha tomado esses frutos para sua alimentação. Perto dali existia as ruínas de um antiquíssimo templo no qual, como ele mesmo contava e testemunham seus discípulos, ressoava dia e noite as vozes dos demônios, tão inumeráveis que se podia crer tratar-se de um exército. Hilarião se alegrou muito porque tinha por perto inimigos contra quem lutar e habitou ali durante cinco anos. Nesses seus últimos anos de vida, Hesíquio o visitava com freqüência. Na última etapa, foi consolado ao ver que, em razão da dificuldade do acesso ao seu refúgio e da quantidade de fantasmas, que eram tema de muitas estórias, ninguém ou quase ninguém ousava chegar até ali. Um dia, ao sair de seu pequeno jardim, viu um homem com o corpo todo paralisado, que jazia perante a porta. Perguntou a Hesíquio quem era e como foi levado até ali. Ele respondeu que era o procurador da aldeia, cujo território pertencia à pradaria onde estavam. Hilarião, chorando e estendendo a mão sobre o homem que jazia na terra, lhe disse: “A ti te digo: em nome do Senhor Jesus Cristo, levanta-te e anda!”. E com admirável rapidez, enquanto as palavras ainda ressoavam em sua boca, os membros já fortalecidos levantaram o homem e o puseram em pé. Quando este milagre se tornou conhecido, a necessidade de muitos venceu a dificuldade do lugar e a subida sem caminhos. Todas as aldeias circunvizinhas somente pensavam em impedir que Hilarião escapasse, porque se divulgou o rumor de que ele não podia permanecer muito tempo no mesmo lugar. E isto não fazia por prontidão ou por sentimento pueril, mas para fugir da honra e do oportunismo dos homens, pois ele desejava sempre o silêncio e a vida oculta.
      Últimos desejos. Quando tinha oitenta anos, estando ausente Hesíquio, lhe escreveu de próprio punho uma breve carta na forma de testamento, deixando-lhe todas as suas riquezas, a saber: o Evangelho, a túnica de saco, o capuz e o seu pobre manto. O irmão que o servia tinha falecido há pouco tempo. Muitos homens piedosos vieram de Pafos para ver Hilarião, que se encontrava doente, especialmente porque tinham ouvido dizer que afirmara estar pronto para ver o Senhor e seria libertado das cadeias do corpo. Veio também Constança, uma santa mulher a cujo genro e filha havia livrado da morte com a unção do óleo. Hilarião conjurou a todos para que não conservassem o seu corpo em momento algum após sua morte, mas que fosse enterrado nessa mesma pradaria, tal como estava vestido, com a túnica de pele, o capuz e o manto tosco.
      Morte de Hilarião. Já ia se esfriando o calor do seu peito e não caía nada nele exceto a lucidez da alma. Com os olhos abertos, dizia: “Graça, que temes? Graça, alma minha, por que duvidas? Durante quase setenta anos serviste a Cristo e agora temes a morte?”. Com estas palavras, exalou seu último suspiro. Imediatamente foi enterrado e assim, na cidade, foi anunciada primeiramente sua sepultura e depois sua morte.
       Traslado para a Palestina. Pouco depois do enterro, Hesíquio, que estava na Palestina, partiu para o Chipre. Fingiu querer permanecer nesse mesmo jardim para dissipar toda suspeita dos habitantes do lugar, que montavam guarda cuidadosamente. Assim, após dez meses, com grande perigo para sua vida, conseguiu retirar o corpo de Hilarião e o levou para Maiuma, acompanhado por todos os monges e multidões que vieram das cidades, e o sepultou na sua antiga cela. Tinha a túnica, o capuz e o manto intactos, bem como todo o corpo, que parecia ainda estar vivo, e exalava tão fragrante perfume que podia-se crer ter sido banhado em ungüentos.

      O culto do santo. Chegando ao final deste livro, creio que não posso calar a devoção de Constança, aquela santíssima mulher: logo que chegou a notícia de que o corpo de Hilarião se encontrava na Palestina, morreu repentinamente, atestando, também, com sua morte, seu verdadeiro amor pelo servo de Deus. Tinha o costume de passar a noite velando em seu sepulcro e, como se estivesse ali presente, pedia a ele para que a ajudasse através de sua intercessão. Ainda hoje se pode ver a grande contenda que existe entre os palestinos e os cipriotas, uns porque têm o corpo de Hilarião, os outros porque têm seu espírito. Contudo, em ambos os lugares ocorrem diariamente grandes milagres, sobretudo no horto de Chipre, talvez porque ele amou mais esse lugar.



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Fonte: Veritatis Splendor (http://www.veritatis.com.br)

Tradução: Carlos Martins Nabeto

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