(Patrística)
Vida de Hilarião 420 dC
(Autor: São Jerônimo)
PRÓLOGO
Ao dispor-me a escrever a vida de Santo Hilarião, invoco o Espírito
Santo que habitou nele para que, assim como lhe concedeu o poder de realizar
milagres, conceda a mim palavras para relatá-los, de modo que expressem
adequadamente os fatos. Porque, como afirma Crispo, a virtude daqueles que
realizaram obras é apreciada à medida que os grandes talentos os elogiam com
palavras apropriadas.
Alexandre Magno da Macedônia, a quem Daniel chamou trombeta, leopardo e cabra
macho, quando chegou perante o túmulo de Aquiles, exclamou: "Feliz de ti,
jovem, que tiveste a felicidade de encontrar um grande divulgador das tuas
façanhas". Se referia, naturalmente, a Homero.
Devo narrar a vida e as virtudes de um homem de forma que, se Homero
vivesse hoje, invejaria o meu tema e sucumbiria ante sua magnitude.
Santo Epifânio, bispo de Salamina, no Chipre, que viveu muito tempo com
Hilarião, escreveu suas façanhas em uma breve carta que é lida pelo povo;
porém, uma coisa é aludir de modo geral a um morto e outra narrar os milagres
operados pessoalmente por ele. Por isso, também nós, que empreendemos a obra
iniciada por Epifânio – mais para honrá-lo que para ofendê-lo – não levamos em
conta as palavras dos maledicentes que, em outro tempo, criticaram a minha
"Vida de Paulo" e que, talvez, criticarão também a de Hilarião, pois
reprovarão a vida solitária que afasta do mundo, de forma que, quem sempre
permaneceu oculto foi considerado como inexistente e quem foi visto por todos
[foi considerado] como insignificante. Isto mesmo seus predecessores fizeram em
outro tempo, os fariseus, a quem não agradou nem o deserto, nem os jejuns de
João, nem tampouco as multidões que acompanhavam o Senhor, nosso Salvador, nem
o modo como comia e bebia.
Por isso, coloco mãos à obra que me propus a fazer e seguirei adiante
fazendo ouvidos surdos aos inimigos da cela.
A JUVENTUDE DE HILARIÃO E SUA ASCESE
Uma rosa em meio aos gramáticos. Hilarião, nascido na aldeia de Tavata,
situada a uns sete quilometros e meio de Gaza, cidade da Palestina, floresceu,
segundo o provérbio, como uma rosa entre os espinhos, já que seus pais eram
idólatras. Eles o enviaram para a Alexandria e o confiaram a um gramático; ali
Hilarião, tendo em conta a sua idade, deu mostras do seu grande talento e bons
costumes. Em pouco tempo, era amado por todos e chegou a ser bem versado na
arte de falar. Porém, mais importante que tudo isto, é que acreditava no Senhor
Jesus. Não se deleitava nas paixões do circo, nem no sangue da arena, nem na
luxúria do teatro; todo seu afã era para participar das assembléias da Igreja.
Com Antonio. Foi então que se viu diante do célebre nome de Antonio,
elogiado por todo povo do Egito. Inflado pelo desejo de vê-lo, dirigiu-se ao
deserto. Imediatamente depois de tê-lo visto, trocou suas antigas vestimentas e
permaneceu com ele por quase dois meses. Observava seu modo de viver, a
intensidade de seus costumes, sua assiduidade na oração, sua humildade na
acolhida dos irmãos, sua severidade para corrigi-los, sua prontidão para
exortá-los e como nenhuma debilidade quebrava sua continência e austeridade de
alimentação. Porém, não podendo mais suportar as numerosas pessoas que
procuravam Antonio em razão de seus mais diversos sofrimentos ou ataques dos
demônios, considerou que não era conveniente suportar no deserto os habitantes
das cidades. Devia, pois, começar como começou Antonio; este – pensava –
recebia, como um homem forte, o prêmio da vitória, enquanto que ele, Hilarião,
nem sequer havia começado sua batalha. Então voltou para sua pátria com alguns
monges. Seus pais haviam falecido; deu parte dos seus bens a seus irmãos e
outra parte aos pobres, não reservando absolutamente nada para si, recordando o
exemplo e o castigo de Ananias e Safira narrado nos Atos dos Apóstolos.
Recordava, sobretudo, a palavra do Senhor: “Aquele que não renuncia a tudo que
possui não pode ser meu discípulo”. Tinha, então, quinze anos. Assim, nu mas
armado em Cristo, entrou na solidão que se extende à esquerda do caminho que
vai para o Egito pelo litoral, a quinze quilometros de Maiuma, que é o porto de
Gaza. Ainda que esses lugares estivessem ensangüentados por causa dos bandidos
e apesar das advertências de seus parentes acerca do gravíssimo perigo que
corria, desprezou a morte para escapar da morte.
No deserto de Maiuma.Todos se maravilhavam do valor e de sua pouca
idade, porém, uma chama interior e um centelha de fé brilhava nos seus olhos.
Sua bochechas eram coradas e seu corpo delicado e frágil; era incapaz de
suportar as austeridades e, por isso, o faziam sofrer o calor e o frio, mesmo
quando leves. Assim, cobertos seus membros apenas por panos de saco, com um
capuchão de pele que lhe dera Antonio por ocasião da sua partida, e um manto
rústico, vivia num vasto e terrível deserto entre o mar e o pântano. Comia
apenas quinze figos após o pôr-do-sol e como a região tinha má-fama por causa
dos bandidos, acostumou-se a não ficar sempre no mesmo lugar. O que poderia
fazer o diabo? Para onde poderia ir? Aquele que se gloriava dizendo: “Subirei
ao céu, colocarei meu trono sobre as estrelas do céu e serei semelhante ao
Altíssimo” se via vencido e pisoteado por um menino antes que sua idade o
permitisse pecar.
Tentações e ascese. [O diabo,] então, atacava seus sentidos e sugeria ao
seu corpo adolescente os costumeiros ardores da voluptuosidade. Assim, o
soldado de Cristo se via obrigado a pensar naquilo que ignorava e a revolver
seu espírito na pompa que não havia conhecido pela experiência. Irritado, pois,
consigo mesmo e golpeando o peito com os punhos, como se pudesse expulsar os
pensamentos com os golpes das suas mãos, dizia: “Burro! Não te deixarei dar
coices, nem te alimentarei com cevada, mas com palha; te esgotarei de fome e
sede, e irei te carregar com pesado fardo; te submeterei ao calor e ao frio
para que penses mais no alimento que na concupiscência!”. Por isso, a cada dois
ou três dias sustentava sua frágil vida com algumas ervas e uns poucos figos,
orando e salmodiando com freqüência, trabalhando a terra com a enxada, para que
a fadiga do trabalho redobrasse a dos jejuns. Depois, tecendo folhas de junco,
praticava a disciplina dos monges do Egito e a sentença do Apóstolo que diz: “O
que não trabalha não coma”. Estava tão fatigado, seu corpo tão consumido, que
só sustentava os ossos.
Alucinações. Uma noite ouviu o gemido de uma criança, o balar das
ovelhas, o mugido de bois, os cânticos de prostitutas, os rugidos de leões, o
ruído de um exército e um monstruoso clamor de vozes de todos os tipos, a ponto
que quase cedeu àqueles sons, antes de ver o que os provocava. Compreendeu que
eram armadilhas montadas pelos demônios e, ajoelhando-se, persignou sua fronte
com o sinal da cruz. Armado com aquele elmo e envolto com a coraça da fé,
prostrado na terra, lutava mais vigorosamente, desejando ver de alguma maneira
aqueles que o aterrorizavam ouvir e, olhando ao seu redor, aqui e ali, com
olhos ansiosos. De repente, sob a claridade da lua, viu precitar sobre ele um
carro de cavalos de fogo. Invocou, em alta voz, o nome de Jesus e a terra se
abriu imediatamente ante seus olhos e todo esse aparato foi tragado pelo
abismo. Então disse: “Atirou ao mar o cavalo e seu cavaleiro” e “Uns confiam em
seus carros, outros em sua cavalaria; nós, entretanto, invocamos o nome de
nosso Deus”.
Visões. Muitas e variadas foram as tentações e ciladas do demônio, tanto
durante o dia quanto durante a noite. Se quisesse narrá-las todas, excederia os
limites deste livro. Quantas vezes, enquanto deitado, se lhe apareceram
mulheres desnudas; quantas vezes, enquanto com fome, viu suculentas refeições!
Algumas vezes, enquanto orava, saltou sobre ele um lobo que uivava e um porco
que granhia; e enquanto salmodiava, se lhe apresentava um espetáculo de lutas
de gladiadores e um deles, que parecia ferido mortalmente, se arrastava até
seus pés e lhe suplicava para que o sepultasse.
O cavaleiro. Certa vez estava orando com a cabexa fixa na terra e, como
é comum à natureza humana, sua mente se distraiu da oração, pensando em outra
coisa. Então saltou sobre seus ombros um cavaleiro impetuoso que, golpeando-lhe
as costas com suas botas e açoitando seu dorso com um chicote, gritou: “Ei, por
que cochilas?” Depois disto, rindo muito, vendo-o desfalecer, lhe perguntou se
desejava sua ração de cevada.
A moradia. Dos dezesseis aos vinte anos, protejeu-se do calor e da chuva
em uma pequena cabana levantada com juncos e folhas de figueira entrelaçados.
Depois, teve uma pequena cela, que construiu e que permanece até hoje, de
quatro pés de largura e cinco de altura, isto é, mais baixa que sua própria
estatura e um pouco mais larga do que necessitava seu corpo. Podia ser
considerada mais como sepulcro que como habitação.
Gênero de vida. Cortava seu próprio cabelo uma vez ao ano, no dia de
Páscoa; dormiu até sua morte sobre a terra desnuda, sobre uma esteira de
juncos. Nunca lavou o tosco saco que vestia, dizendo que era dispensável buscar
limpeza na sujeira. Tampouco trocou sua túnica por outra, a menos que a
anterior estivesse quase reduzida a farrapos. Tendo aprendido de memória as Sagradas
Escrituras, as recitava após as orações e os salmos, como se Deus estivesse ali
presente. E como seria muito amplo descrever seu progresso espiritual em suas
diversas etapas, momento a momento, resumirei brevemente apresentando o
conjunto de sua vida perante os olhos do leitor e logo voltarei à ordem da
narrativa.
Alimentos. Desde os vinte e um anos, se alimentou, durante três anos,
com meio sextário de lentilhas umedecidas em água fria, e, os próximos três
anos, com pão seco, água e sal. Dos vinte e sete anos aos trinta e cinco anos,
seu alimento consistiu em seis onças de pão de cevada e verduras pouco cozidas,
sem azeite. Porém, quando sentiu que seus olhos se obscureciam e que todo o seu
corpo queimado pelo sol se enrrugava coberto por uma crosta áspera como
cascalho, acrescentou azeite ao alimento e, até os sessenta e três anos, seguiu
praticando este regime de abstinência, não provando absolutamente nada mais,
nem frutas, nem legumes, nem qualquer outra coisa. Então, vendo-se fatigado no
corpo e pensando que se aproximava a morte, desde os sessenta e quatro anos até
os oitenta, se absteve novamente de pão, impulsionado por um incrível fervor de
espírito, próprio de quem se inicia no serviço do Senhor, numa época em que os
demais resolveram viver menos austeramente. Como alimento e bebida, fazia uma
sopa de farinha e verduras trituradas, que pesava apenas cinco onças. Cumprindo
esta regra de vida, nunca rompeu o jejum antes do pôr-do sol, nem sequer nos
dias de festa ou quando se encontrava gravemente doente. Porém, já faz hora de
retornarmos ao relato normal.
Os assaltantes noturnos. Quando tinha dezoito anos e ainda habitava sua
pequena choupana, certa noite apareceram ladrões pensando que encontrariam algo
para roubar. Assim, consideraram uma afronta que um anacoreta tão jovem não
temesse seus ataques. Desde a tarde até o pôr-do-sol, sondaram o terreno entre
o mar e os pântanos, sem poderem encontrar o lugar de seu refúgio. Finalmente,
encontrando o rapaz ao nascer a luz do dia, lhe perguntaram ironicamente: “O
que farias se ladrões o atacassem?”. Ele respondeu: “O que está nu não tem medo
de ladrões”. Lhe disseram: “Mas certamente podemos te matar”. Disse ele:
“Certamente que sim, mas, mesmo assim, não temo, porque estou preparado para
morrer”. Os ladrões, admirados por sua firmeza e fé, confessaram seu extravio
noturno e a cegueira dos seus olhos, e lhe prometeram que daquele dia em diante
levariam uma vida mais honesta.
A PRIMEIRA SÉRIE DE MILAGRES
A mulher sem filhos. Já estava há vinte e dois anos no deserto e sua
fama era conhecida por todos, eis que difundida por todas as cidades da
Palestina. Uma mulher de Eleuterópolis, a quem o marido desprezava em razão da
sua esterilidade (durante quinze anos de matrimônio não foi capaz de produzir
frutos), foi a primeira que se atreveu a apresentar-se diante de Hilarião e -
sem que ele pudesse imaginar algo semelhante - repentinamente se atirou aos
seus pés e lhe disse: “Perdoa o meu atrevimento, mas considera a minha
necessidade. Por que afastas de mim os teus olhos? Por que foges de quem te
suplica? Não me vejas como uma mulher, mas como uma aflita. O meu sexo gerou o
Salvador; não são os sadios que precisam de médico, mas os doentes”.
Finalmente, Hilarião lhe deu atenção – depois de tanto tempo sem ver mulher – e
lhe perguntou o motivo da sua vinda e das suas lágrimas. Uma vez informando,
levantou os olhos para o céu e a exortou a ter confiança e, em lágrimas, a
despediu. Após um ano, teve um filho.
Aristenete. O início de seus milagres se fez ainda mais célebre quando
ocorreu outro ainda maior. Quando Aristenete, mulher de Helpídio (que depois
foi prefeito do pretório), muito conhecida entre os seus e mais ainda entre os
cristãos, regressava com seu marido e seus três filhos após ter visitado Santo
Antonio, se deteve em Gaza por causa de uma enfermidade que os havia atacado.
Ali, seja pelo ar contaminado, seja – como depois de manifestou – para a glória
do servo de Deus, Hilarião, todos foram atacados ao mesmo tempo por febres
altas e os médicos já não esperavam recuperação. A mão jazia, gemendo em alta
voz, e ia de um filho a outro, semelhantes já a cadáveres, sem saber a qual
chorar primeiro. Ouvindo dizer que no deserto próximo havia um monge, deixando
de lado a sua fama de senhora respeitável – considerando apenas seu instinto
materno – para lá se dirigiu acompanhada de donzelas e eunucos. Seu marido, a
duras penas, conseguiu que efetuasse a viagem montada sobre um asno. Quando
chegou à presença de Hilarião, lhe disse: “Em nome de Jesus, nosso misericordiosíssimo
Deus, te conjuro por sua cruz e por seu sangue que me devolvas os meus três
filhos e assim seja glorificado o nome do Senhor Salvador nesta cidade pagã.
Que seu servo entre Gaza e Marnas seja destruído”. Ele resistia, dizendo que
nunca saíra de sua cela e que não estava habituado a entrar nas cidades, nem
sequer em uma aldeia. Ela, prostrada na terra, dizia várias vezes: “Hilarião,
servo de Cristo, devolva-me os meus filhos. Antonio os teve em seus braços no
Egito; salvai-os tu na Síria”. Todos os presentes choravam e ele também,
negando, chorou. “Que mais posso dizer?”. A mulher não partiu enquanto ele não
prometesse que entraria em Gaza após o pôr-do-sol. Quando chegou ali, fazendo o
sinal da cruz sobre o leito de cada um e sobre os membros acometidos
pela febre, invocou o nome de Jesus e – coisa admirável! – de imediato, o suor
dos enfermos começou a brotar de três fontes. Então, nessa mesma hora, se
alimentaram e, reconhecendo à sua mãe que chorava, beijaram as mãos do santo,
bendizendo a Deus. Quando isto aconteceu e a notícia se espalhou por todos os
cantos, se dirigiram a ele multidões da Síria e do Egito, de modo que muitos
passaram a crer em Cristo e abraçaram a vida monástica. Todavia, não existia
monastérios na Palestina e ninguém na Síria havia conhecido um monge antes de
Hilarião. Ele foi o fundador e o primeiro mestre deste estilo de vida e desta
ascese naquela província. O Senhor Jesus tinha no Egito o ancião Antonio e, na
Palestina, o jovem Hilarião.
Um cego vê. Facídia é um bairro de Rhinocorura, cidade do Egito. Dali
levaram ao beato Hilarião uma mulher cega desde os dez anos de idade. Lhe foi
apresentada por vários irmãos, muitos dos quais eram monges. Ela lhe disse que
havia gasto todos os seus bens com médicos. Então ele lhe disse: “Se tivesses
dado aos pobres o que perdeste com médicos, Jesus, o verdadeiro médico, te
teria curado”. Como ela gritava pedindo misericórdia, ele tocou seus olhos com
saliva e, em seguida, a exemplo do Salvador, ocorreu o milagre da cura.
O cocheiro de Gaza. Também um cocheiro de Gaza, que ia sentado em sua
carruagem, foi atacado por um demônio. Caiu completamente imóvel, a ponto de
não poder mover as mãos nem dobrar os joelhos. Colocado sobre um leito e
podendo apenas mover a língua para orar, ouviu o que lhe foi dito [por
Hilarião]: que não poderia sarar se não cresse em Jesus e prometesse renunciar
à sua antiga profissão. Ele creu, prometeu e foi curado; e se alegrou mais pela
saúde da sua alma que da de seu corpo.
Marsitas. Havia um jovem forte chamado Marsitas, do território de
Jerusalém, que se gabava de possuir uma força tão grande que podia carregar
durante muito tempo e por um longo caminho quinze módios de trigo. Se gloriava
de possuir uma força superior à dos eqüinos. Estava possuído por um demônio
muito mau e nada podia detê-lo: correntes, grilões, celas ou portas. Com suas
mordidas, havia arrancado fora o nariz ou as orelhas de muitos. A um cortou os
pés e a outros, a garganta. A tal ponto aterrorizava a todos que, amarrado com
cordas e correntes o arrastaram ao monastério, como que a um touro enfurecido.
Quando os irmãos o viram, cheios de terror – era um homem de extraordinário
porte físico – avisaram o pai [Hilarião]. Este, permanecendo sentado, ordenou
que o trouxessem e que o soltassem. Uma vez que o deixaram, lhe disse: “Inclina
a cabeça e vem”. Ele começou a tremer e a dobrar o joelho, e nem sequer se
atrevia a olhar Hilarião. Deposta sua ferocidade, começou a lamber os pés
daquele que estava sentado. Assim, o demônio que havia possuído o jovem,
exorcizado e castigado, saiu dele ao final de sete dias.
Orión. Tampouco podemos nos calar no que se refere a Orión, homem
importante e rico da cidade de Aila, situada junto ao mar Vermelho. Estava
possuído por uma legião de demônios e foi conduzido a Hilarião. Suas mãos,
joelhos, quadris e pés estavam acorrentados; seus olhos, torcidos e
ameaçadores, expressavam a crueldade do seu furor. Enquanto o santo caminhava
com os irmãos e lhes interpretava certa passagem da Escritura, aquele escapou
das mãos que o sujeitavam e, tomando Hilarião pelas costas, o levantou às
alturas. Um grande clamor brotou de todos, pois temeram que destroçasse seus
membros debilitados pelo jejum. O santo, sorrindo, disse: “Fiquem tranqüilos;
deixem-me na arena com o meu adversário”. E, assim, passando a mão sobre os
seus ombros, tocou a cabeça de Orión e, tomando-o pelos cabelos, o trouxe até
seus pés, retendo-o à sua frente, com ambas as mãos, e pisando os pés daquele
com os seus pés. E repetia: “Retorce-te!”. E Orión gemeu e, ajoelhando-se,
tocou o solo com sua cabeça. Hilarião disse: “Senhor Jesus: liberta este
desgraçado, livra este cativo; assim como vences a um, podes vencer a muitos”.
E ocorreu algo inaudito: da boca do homem saíram diversas vozes, como o clamor
confuso de um povo. Uma vez curado, também este, pouco tempo depois, foi ao
monastério com sua mulher e seus filhos, dar graças e levar muitos presentes. O
santo, então, lhe disse: "Não leste sobre como sofreram Giezei e Simão, um
por haver recebido e o outro por haver oferecido dinheiro? Aquele queria vender
a graça do Espírito Santo; este outro, queria comprá-la”. E como Orión,
chorando, insistia: “Toma e dá aos pobres”, Hilarião respondeu: “Tu podes
distribuir teus bens melhor que eu, pois percorres as cidades e conheces os
pobres. Eu, que abandononei o que era meu, por que vou desejar o alheio? Para
muitos, o nome dos pobres é um ocasião de avareza; a misericórdia, ao
contrário, não conhece artifícios. Ninguém dá melhor que aquele que não reserva
nada para si”. Orión, entristecido, jazia em terra. Hilarião, então, lhe disse:
“Filho, não te entristeças! O que faço por mim, faço também por ti. Se
aceitasse esses presentes, ofenderia a Deus e a legião de demônios voltaria
para ti”.
O paralítico de Maiuma. E como silenciar o que diz respeito a Zanano de
Maiuma? Enquanto cortava pedras retiradas da orla do mar, não muito distante do
monastério de Hilarião, para uma construção, foi atacado por uma paralisia em
todos os seus membros. Seus companheiros de trabalho o conduziram ao santo.
Sarou imediatamente e pôde retornar à sua obra. A costa que se extende da
Palestina ao Egito, suave por sua natureza, se torna áspera em razão da areia
que se endurece como pedra, tornando-se paulatinamente mais sólida. Então deixa
de ser areia para o tato, ainda que continue conservando tal aparência.
Itálico, criador de cavalos. Itálico, cidadão cristão da mesma
localidade, criava cavalos para o circo, competindo com um magistrado romano de
Gaza, que era adorador do ídolo Marnas. Nas cidades romanas se conservava,
desde os tempos de Rômulo, a recordação do rapto das Sabinas, que fôra bem
sucedido. Os cavaleiros, dirigindo carroças com quatro cavalos, percorrem sete
vezes o circuito em honra de Conso, o deus dos conselhos. A vitória consiste em
eliminar os cavalos do adversário. Como seu rival tinha um feiticeiro que, com
seus encantamentos demoníacos, freava os cavalos daquele e estimulava a correr
seus próprios cavalos, Itálico foi ver Hilarião e lhe suplicou não tanto para
prejudicar ao adversário, mas para proteger seus animais. Ao venerável ancião
não lhe pareceu razoável orar por um motívo tão fútil. Sorriu e lhe disse: “Por
que não dás aos pobres o preço da venda dos teus cavalos, para a salvação da
tua alma?”. Ele respondeu que se tratava de um emprego público que realizava
não por vontade própria, mas por obrigação. Como cristão, não podia empregar
artes mágicas, mas podia pedir ajuda a um servo de Cristo, especialmente contra
os habitantes de Gaza, inimigos de Deus, que insultavam não tanto a ele como a
Igreja de Cristo. A pedido dos irmãos que se encontravam presentes, Hilarião
ordenou que enchessem de água o vaso de terracota em que ele costumava beber e
o dessem àquele homem. Itálico o levou e roçou com ele o estábulo, os cavalos e
seus cocheiros, o coche e as celas do recinto. Era extraordinária a expectativa
do povo. O adversário ironizava, satirizando esse gesto, mas os partidários de
Itálico exultavam, prometendo uma vitória segura. Dado o sinal, uns correram
rapidamente enquanto que outros [, os do magistrado,] foram impedidos. Sob o
coche daqueles, as rodas ardiam; estes, por outro lado, viam apenas o
afastamento daqueles, que se adiantavam como se estivessem voando. Então se
elevou um grandiosíssimo clamor entre a multidão, ao ponto que também os pagãos
gritaram: “Marnas foi vencido por Cristo”. Os adversários de Hilarião,
furiosos, pediram para que este, como feiticeiro dos cristãos, fosse levado ao
suplício. A vitória indiscutível daqueles jogos de circo e os outros feitos
precedentes foram ocasião para que um grande número de pagãos abraçassem a fé.
Uma jovem libertada de um encantamento mágico. Um jovem do mesmo mercado
de Gaza, amava perdidamente uma virgem de Deus que morava ali perto. Não havia
tido êxito nem com suas freqüentes bajulações, nem com seus gestos e assobios,
nem outras coisas semelhantes que podem ser o começo para a morte da
virgindade. Então foi a Mênfis para revelar sua ferida de amor, regressar e ver
a donzela caída por artes mágicas. Depois de um ano, instruído pelos sacerdotes
de Esculápio - que não curam as almas mas as perdem - retornou com o propósito
de estuprá-la, como havia antecipado em sua imaginação. Enterrou sob o umbral
da casa da donzela certas palavras e figuras estranhas gravadas sobre uma mina
de bronze do Chipre. De repente, a virgem enlouqueceu, arrancou o véu, soltou
os cabelos e, rangendo os dentes, chamava o jovem aos gritos. A veemência do
amor havia se convertido em loucura. Então foi levada por seus pais ao
monastério e recomendada ao ancião. O demônio uivava e declarava: “Sofri
violência! Fui trazido aqui contra a minha vontade! Com meus sonhos enganei os
homens em Mênfis! Quantas cruzes, quantos tormentos estou sofrendo! Me obrigas
a sair, porém estou preso sob o umbral! Não posso sair se não me soltar o jovem
que me retém!”. Então o ancião lhe disse: “Grande é a tua força por te reterdes
em troca de um cordão de uma mina! Diz-me: por que te atreveste a entrar em uma
donzela consagrada a Deus?”. Respondeu aquele: “Para conservá-la virgem”.
[Disse Hilarião:] “Irás conservá-la? Tu, inimigo da castidade? Por que não
entraste naquele que te enviou?”. Porém, ele respondeu: “Por que iria entrar
nele, se ele já tem um colega meu, o demônio do amor?”. O santo quis purificar
a virgem antes de mandar buscar o jovem e seus objetos mágicos. Assim não
pareceria que o demônio só se retiraria porque os encantamentos foram pagos ou
porque se dera crédito às palavras do demônio, justamente ele que assegurava
que os demônios são mentirosos e astutos em fingimento. Por isso, depois de
devolver a saúde à virgem, a repreendeu ásperamente por ter feito algo que
permitiu ao demônio entrar nela.
Um oficial de Constâncio libertado. A fama do santo se havia espalhado
não apenas pela Palestina e cidades vizinhas do Egito e Síria, mas já chegara
às províncias afastadas. Um oficial do Imperador Constâncio, que pela cabeleira
ruiva e brancura de seu corpo indicava a província de onde provinha (seu povo
natal está situado entre os saxões e os alemães, região não tão extensa quanto
forte, chamada Germânia pelos historiadores e, agora, França), há muito tempo,
desde sua infância, estava possuído por um demônio que o obrigava a gritar
durante a noite, a gemer e a ranger os dentes. Em segredo, pediu ao imperador um
salvo-conduto para ver o ancião, indicando cuidadosamente o motivo. Também
recebeu cartas para o governador da Palestina e foi conduzido a Gaza com grande
honra e escolta. Quando perguntou aos decuriões desse lugar onde habitava o
monge Hilarião, os cidadãos de Gaza ficaram aterrorizados, pensando que havia
sido enviado pelo imperador. O levaram ao monastério para honrar ao emissário
e, deste modo, se em algo tinham ofendido a Hilarião, com este gesto se
desculpariam. Neste momento, o ancião passeava pelas areias suaves, murmurando
para si os versos de algum salmo. Ao ver tanta gente que se aproximava, se
deteve, saudou a todos e os abençoou com a mão. Depois de uma hora, despediu
aos outros, que se foram, e disse ao visitante que ali ficasse com seus servidores
e guardas. Pela expressão dos seus olhos e do seu rosto, compreendeu o motivo
da sua vinda. De imediato, ante a pergunta do servo de Deus, o homem foi
elevado ao alto, de modo que apenas tocava a terra com os pés, e, com um
fortíssimo rugido, respondeu na língua síria, na qual foi interrogado. Viu-se
sair da boca daquele bárbaro - que só conhecia a língua franca e a latina -
palavras sírias com uma pronúncia bem pura. Não faltavam os estridores, nem as
aspirações, nem nenhuma outra característica da linguagem palestinense. O
demônio confessou de que modo havia entrado nele e, para que pudessem
compreender os intérpretes, que só conheciam o grego e o latim, Hilarião também
o interrogou em grego. Ele respondeu e fez alusão aos numerosos ritos de
encantamento e procedimentos infalíveis das artes mágicas. Hilarião lhe disse:
“Não me interessa saber como entraste, porém te ordeno que saias em nome de
nosso Senhor Jesus Cristo”. Quando foi curado, o bárbaro ofereceu, com
ingenuidade, dez libras de ouro. Ele recebeu de Hilarião um pão de cevada e o
ouviu dizer que quem comia desse pão considerava o ouro como barro.
Animais curados. Porém, não basta falar dos homens. Todos os dias
levavam até ele animais furiosos. Por exemplo: um dia levaram-lhe um camelo de
enorme tamanho, conduzido por mais de trinta homens e amarrado com fortes
cordas, em meio a grandes gemidos. Já havia pisoteado a muitos. Seus olhos
estavam cheios de sangue, saía espuma da sua boca e movia a língua inchada.
Porém, o que atemorizava mais era o barulho dos seus ferozes rugidos. O ancião
ordenou que o desamarrassem. Imediatamente, tanto os que haviam trazido [o
animal], como os que estavam com o ancião, fugiram, sem exceção, para todas as
direções. Então ele avançou ao encontro do animal e lhe disse: “Diabo, não me
assustas com esse teu imenso corpo. Em uma raposa ou em um camelo, és sempre o
mesmo”. E assim se mantinha firme, com a mão estendida. Quando a besta,
furiosa, se cercou dele como que para devorá-lo, subitamente desaprumou e caiu
com a cabeça sobre a terra. Todos os presentes se maravilharam ao ver tão
repentina mansidão, após tanta ferocidade. O ancião os ensinava que, para
prejudicar os homens, o diabo atacava também os animais domésticos; que nutria
um ódio tão grande contra os homens que queria fazê-los perecer, não apenas
eles, como também suas posses. Para ilustrar isto, propunha o exemplo de Jó:
antes de obter a permissão para tentar [o homem], o diabo havia destruído todos
os seus bens. E a ninguém devia perturbar o fato de que, por ordem do Senhor,
dois mil porcos foram aniquilados pelos demônios. De outro modo, os que
presenciaram esse fato não teriam acreditado que uma tal multidão de demônios
pudesse sair de um só homem, se não vissem com seus próprios olhos, semelhante
quantidade de porcos precipitando-se ao mar, ao mesmo tempo.
PREOCUPAÇÃO PASTORAL E ÊXODO
Antonio honra a Hilarião. Me faltaria tempo se quisesse narrar todos os
milagres realizados por ele. O Senhor o havia elevado a tão alta glória que o
bem-aventurado Antonio, ouvindo acerca do seu modo de vida, lhe escreveu e, com
grande prazer, recebia suas cartas. Quando iam a ele doentes das regiões da
Síria, lhes dizia: “Por que se preocupam em vir de tão longe quando têm ali o
meu filho Hilarião?”. Seu exemplo fez com que surgissem inúmeros monastérios em
toda Palestina e os monges acorriam em grande número até ele. Ao ver isto,
Hilarião exaltava a graça de Deus e exortava a cada um a trabalhar em proveito
de sua própria alma, dizendo-lhes que a aparência deste mundo passa e que a
verdadeira vida é a que se obtém à custa de sofrimentos na vida presente.
Hilarião visita os monastérios. Querendo dar exemplo de humildade e
deferência, Hilarião visitava as celas dos monges em dias estabelecidos, antes
da vindima. Quando os irmãos se inteiravam disto, todos acorriam a ele e, em
companhia de semelhante guia, recorríam aos monastérios, levando seus próprios
víveres porque às vezes se reuniam dois mil homens. Com o passar do tempo, cada
aldeia começou a oferecer com alegria alimento aos monges estabelecidos, para
que pudessem acolher aqueles santos. Quanto foi seu zelo para que não se
descuidasse a nenhum de seus irmãos, por mais humilde ou pobre que fosse, se
pode deduzir disto: enquanto se dirigia ao deserto de Cades, para visitar a um
de seus discípulos, chegou a Elusa com uma imensa multidão de monges, no dia em
que as celebrações anuais reuniram no templo de Vênus toda a população da
cidade. Se adora a essa deusa em razão de Lúcifer, a cujo culto foi dedicado
aquele povo de sarracenos. A mesma cidade é, em grande parte, semi-bárbara, por
causa de sua situação geográfica. Assim, quando souberam que Santo Hilarião
passava por ali, como ele havia curado a muitos sarracenos atacados pelo
demônio, todos juntos saíram ao seu encontro, acompanhados por suas mulheres e
filhos, inclinando suas cabeças e gritando em língua síria: “Barech”, que quer
dizer: “Abençoa-nos”. Ele, recebendo-os com doçura e humildade, lhes rogava
para que adorassem a Deus e não às pedras e, ao mesmo tempo, chorava
copiosamente, olhando para o céu, assegurando-lhes que viria vê-los mais tarde,
se cressem em Cristo. Ó admirável graça do Senhor: não o deixaram partir antes
que traçasse o plano de uma futura igreja e que seu sacerdote, já marcado com a
coroa, fosse também assinalado com o sinal de Cristo.
O monge ávaro. Outro ano, quando ia sair para visitar as celas, anotou
em uma folha em quais se deteria e em quais passaria sem se deter. Os monges
sabiam que um dos irmãos era ávaro e desejando curá-lo desse vício, lhe rogaram
para que se detivesse com ele. Hilarião lhes disse: “Por que querem
prejudicar-se a vós mesmos e molestar o irmão?”. Quando o irmão ávaro ouviu
estas palavras, ficou vermelho, mas, apoiado pela insistência de todos e com
grande trabalho, conseguiu que Hilarião incluísse sua cela na lista de visita.
Dez dias depois, chegaram até ele. Tinha colocado guardas na vinha, como se
tratasse de uma granja. Os guardas afastaram todos os que tentaram se
aproximar, jogando pedras e bolas de terra, além de atirar com estilingues, de
forma que todos partiram pela manhã sem poder comer uvas, enquanto que o
ancião, rindo, aparentava não ter se dado conta do que ocorrera.
Sabas, o monge generoso. Logo foram recebidos por outro monge, chamado
Sabas – omitimos o nome do ávaro e apresentamos o do generoso. Como era
Domingo, convidou a todos para a vinha, para que, antes de comerem, pudessem se
aliviar com as uvas da fadiga do caminho. Porém, o santo disse: “Maldito o que
se preocupa com a refeição do corpo antes da que é devida à alma! Oremos,
cantemos salmos, tributemos honra ao Senhor e somente depois iremos à vinha”.
Terminado o serviço divino, estando de pé em um lugar elevado, abençoou a vinha
e ao rebanho que alimentaria a todos. Os que comeram não eram menos de três
mil. A produção da vinha, que enquanto ainda estava intacta, fôra estimada em
cerca de cem garrafas, após vinte dias produziu trezentas. Em contrapartida, o
irmão ávaro obteve algo bem menor e o pouco que recolheu logo se converteu em
vinagre. Demasiado tarde se lamentou! O ancião havia predito a muitos irmãos
que seria assim que se sucederia.. Hilarião detestava, sobretudo, os monges
que, pela pouca fé, reservavam parte de seus bens para o futuro e se
preocupavam com gastos, vestimentas ou qualquer outra coisa que passa junto com
o mundo.
Um irmão demasiadamente cauteloso. Neste sentido, havia se afastado de
um irmão que vivia cerca de cinco milhas, pois ficou sabendo que cuidava da sua
horta com excessiva preocupação e temor, e porque guardava algum dinheiro. Como
queria se reconciliar com o ancião, visitava aos irmãos com freqüência,
principalmente a Hesíquio, a quem Hilarião amava muito. Um dia levou um maço de
favas frescas, que já estavam maduras. Quando Hesíquio as pôs, mais tarde,
sobre a mesa, o ancião, que havia ido visitá-lo, exclamou que não podia
suportar aquele odor e perguntou de onde provinham. Hesíquio lhe respondeu que
um irmão havia trazido as primícias de sua horta para os irmãos. Então o ancião
lhe disse: “Não sentes esse odor espantoso? Não sentes nas favas o odor da
avareza? Atirai-as aos bois, aos animais irracionais e observa se as comem!”. E
ele, segundo a ordem, as deu para os animais. Então os bois, aterrados e
mugindo mais forte que o costume, romperam suas cadeias e fugiram em todas as
direções. O ancião Hilarião tinha a graça de saber, pelo odor dos corpos, dos
vestidos e das coisas que alguém havia tocado, a que demônio ou vício estava
submetido.
Nostalgia do passado e morte de Santo Antonio. Tendo alcançado os
sessenta e três anos de idade e vendo como havia se expandido as suas celas e a
multidão dos irmãos que habitavam com ele e a quantidade de enfermos e
possessos de todos os tipos que lhe levavam, chorava todos os dias e recordava
com incrível nostalgia seu anterior estilo de vida. O deserto circunvizinho
estava habitado por gente de todo tipo. Quando os irmãos lhe perguntaram o que
estavava acontecendo e por que estava tão abatido, lhes respondeu: “Retornei ao
mundo e já recebi a minha recompensa em vida. Os homens da Palestina e das
províncias vizinhas me consideram uma pessoa importante e, com o pretexto de
prover as necessidades dos irmãos e das celas, possuo utensílios supérfluos”.
Os irmãos cuidavam dele, especialmente Hesíquio, que com admirável amor se
havia entregue à veneração do ancião. Viveu assim chorando durante dois anos,
quando foi ver aquela Aristenete, que já mencionamos acima, esposa do prefeito,
porém que nada tinha em comum com ele. Ela tinha a intenção de ir visitar
Antonio. Hilarião, chorando, lhe disse: “Eu também gostaria de ir. Só não irei
porque estou encerrado no cárcere destas celas e não vejo sentido em fazê-lo,
já que há dias que o mundo está órfão desse padre”. Ela acreditou e não
prosseguiu a viagem; poucos dias depois chegou a notícia de que Antonio havia
adormecido no Senhor.
PEREGRINAÇÃO, MORTE E AFINS
Hilarião vai para o Egito. Que outros admirem os milagres e portentos
que fez; que admirem sua incrível abstinência, ciência, humildade; enquanto a
mim nada me assombra tanto como que haja podido pisotear a glória e a honra. A
ele acudiam bispos, presbíteros, grupos de clérigos e monges, também nobres
damas cristãs – terrível tentação – e, de um ou outro lugar das cidades e do
campo, as pessoas de condição humilde, bem como homens poderosos e altos
magistrados, para receber pão ou azeite bentos. Porém ele não pensava em nada
além da solidão, ao ponto de que um dia decidir partir e, fazendo uso de um
asno – já que estava muito consumido pelos jejuns, mal podendo caminhar –
tentou pôr-se a caminho. Quando se soube disso, como se houvesse anunciado no
Palestina uma calamidade ou luto público, se congregaram mais de dez mil homens
de diversas idades e sexos para retê-lo. Ele permanecia inflexível ante as
súplicas e, removendo a areia com seu báculo, lhes disse: “Não posso mentir ao
meu Senhor. Não posso ver as Igrejas destruídas, os altares de Cristo
pisoteados, o sangue dos meus filhos”. Todos os presentes compreenderam que
revelara um segredo que não queria manifestar. Contudo, o vigiavam para que não
partisse. Então, chamando a todos por testemunhas, afirmou publicamente que não
comeria nem beberia nada se não o deixassem partir. Depois de sete dias de
abstinência, finalmente foi liberado e, deixando saudades a muitos, partiu.
Chegou a Betélia com uma multidão de acompanhantes. Ali convenceu ao povo que
regressaria e elegeu uns quarenta monges que, levando algumas provisões,
puderam seguí-lo adiante. No quinto dia, chegou ao Pelúsio e, depois de ter
visitado aos irmãos que estavam no deserto vizinho e viviam em Lykonos,
caminhou três dias até o forte de Taubasto, para poder ver a Dracôncio, bispo e
confessor que estava ali desterrado. Graças a essa visita, foi incrivelmente
consolado com a presença de um homem tão magno. Então, mais três dias de grande
fadiga e chegou à Babilônia, para ver o bispo Filón, confessor ele também. O
imperador Constâncio, que favorecia a heresia dos arianos, havia deportado
ambos para aqueles lugares. Partiu dali três dias e chegou à cidade de
Afroditón, onde encontrou o diácono Besano, o qual ajudava aos que iam ver
Antonio, cedendo dromedários, em razão da pouca água existente no deserto.
Hilarião revelou aos irmãos que se aproximava o dia do aniversário da morte do
bem-aventurado Antonio e que devia celebrar a vigília noturna no mesmo lugar em
que havia falecido. Portanto, durante três dias, atravessaram aquela vasta e
terrível solidão até chegar a um monte altíssimo, onde encontraram dois monges:
Isaac e Peluso. Isaac fôra o intérprete de Antonio.
Sobre Antonio. Já que se apresenta a ocasião e tocamos nesse tema, nos
parece justo descrever brevemente a habitação deste homem tão magno. Um monte
rochoso e muito alto deixa correr as águas divididas em braços até sua base.
Algumas delas se submergem na areia e outras, correndo para baixo, formam um
riacho em cujas orlas crescem inumeráveis palmeiras que tornam o lugar muito
agradável e acolhedor. Aqui o ancião foi visto correndo daqui para lá com os
discípulos do bem-aventurado Antonio. Diz-se: “Aqui salmodiava, orava e
trabalhava; aqui descansava quando estava fatigado. Estas vinhas e estes
arbustos foram plantados por ele; este horto foi criado com suas próprias mãos;
este tanque para regar a pequena horta foi construído por ele mesmo, com muito
esforço; esta pá lhe serviu durante muitos anos para cavar a terra”. Hilarião
deitava-se sobre a cama de Antonio e beijava esse leito como se ainda estivesse
quente. A pequena cela, com seus quatro lados, não media mais que o corpo de um
homem deitado para dormir. Ademais, no cume altíssimo do monte, até onde
subiram por um caminho muito escarpado em forma de caracol, viram duas celas
das mesmas medidas, nas quais Antonio ficava quando queria fugir da freqüência
dos visitantes e da companhia dos seus discípulos. Estavam cavadas na rocha e
nelas só se acrescentaram as portas. Uma vez chegados à horta, disse Isaac:
“Vêem estas árvores frutíferas e estas hortaliças verdes? Há três anos, quando
uma manada de asnos selvagens as devastou, ordenou a um dos que ia à frente
para que parasse e, golpeando-lhe as costas com seu bastão, disse-lhe: ‘Por que
comem o que não plantaram?’. Desde então, com exceção da água que vinham beber,
nunca mais tocaram em nada, nem nas frutas, nem nas hortaliças”. O ancião pediu
também para que lhe mostrassem o lugar da sepultura de Antonio. Eles o levaram
à parte, não sabemos se a mostraram ou não; mas disseram-lhe que, segundo ordem
de Antonio, deviam esconder o lugar de seu sepultamento para impedir que
Pergâmio, a pessoa mais rica daquela região, levasse para a sua cidade o corpo
de santo e construísse um santuário sobre o seu túmulo.
Hilarião obtém a chuva. Logo, tendo regressado a Afroditón, permaneceu
no deserto vizinho, mantendo consigo apenas dois irmãos, observando tanta
abstinência e silêncio que logo – segundo se dizia – passaram a servir a
Cristo. Fazia três anos que o céu permanecia fechado e tornara áridas essas
terras, de forma que as pessoas diziam que também a natureza chorava a morte de
Antonio. A fama de Hilarião não permaneceu oculta aos habitantes daquele lugar
e, insistentemente, homens e mulheres com rostos sofridos e consumidos pela
fome, pediam chuva ao servo de Cristo, ou seja, o sucessor do bem-aventurado
Antonio. Hilarião, ao vê-los, se comoveu profundamente e, elevando os olhos para
o céu e alçando as mãos para o alto, imediatamente obteve o que eles
imploravam. E eis que aquela região sedenta e arenosa, depois que foi regada
pelas chuvas, se viu, de improviso, inundada por tal multidão de serpentes e
animais venenosos que muitos foram atacados e, se não fossem acudidos
imediatamente por Hilarião, teriam perecido. Com efeito, todos os camponeses e
pastores, tocando suas feridas com óleo bento, obtiveram a cura.
Perseguido pelas autoridades. Vendo que também aqui recebia grandes
honras, partiu para a Alexandria. Dali atravessou o deserto até um oásis mais
interior e, assim como no começo de sua vida monástica, em que nunca permaneceu
em uma cidade, se desviou para ir hospedar-se com uns irmãos, seus conhecidos,
em Bruquios, não tão próximo da Alexandria. Estes receberam o ancião com imensa
alegria. Quando se aproximava a noite, de repente os discípulos ouviram que
estava preparando o asno para partir. Então, atirando-se aos seus pés, lhe
rogaram para que não fosse, e prostrados no umbral, declararam que preferiam
morrer a ver-se privados de tal hóspede. Ele lhes respondeu: “Apresso-me a
partir para não lhes cauar moléstia. Logo compreenderão o que se sucederá, pois
não saio daqui sem um motivo”. Com efeito, no dia seguinte, os prefeitos de
Gaza, acompanhados pelos líctores – que ficaram sabendo que Hilarião havia
chegado no dia anterior – entraram nas celas e, ao não encontrarem-no, diziam
uns para os outros: “Não é verdade o que tínhamos ouvido? É um mago e conhece o
futuro”. Assim que Hilarião deixou a Palestina, Juliano havia tomado o poder
[imperial]. Os cidadãos de Gaza destruíram sua cela e, depois de solicitá-lo ao
imperador, obtiveram a pena de morte para Hilarião e Hesíquio. E foi dada ordem
para que fossem procurados em toda a terra.
Adriano, o falso irmão. Assim, depois de deixar Bruquios, Hilarião
atravessou o deserto sem caminhos e entrou no oásis. Nesse lugar ficou por
cerca de um ano, mas seu renome também o acompanhara. Parecia que já não podia
permanecer oculto no Oriente, onde muitos haviam ouvido falar dele ou de sua
fama; por isso, pensava em navegar para ilhas solitárias, para que pelo menos
os mares pudessem ocultar aquele a quem a terra fizera célebre. Nesse tempo,
chegou da Palestina seu discípulo Adriano, anunciando que Juliano tinha morrido
e começara a reinar um imperador cristão, razão pela qual Hilarião deveria
regressar às ruínas de suas celas. Ele, porém, ao ouvi-lo, recusou e
conseguindo um camelo, viajou pelo desolado deserto e chegou a uma cidade
portuária da Líbia: Paretônio. Ali o infeliz Adriano, que queria regressar à
Palestina e buscava a glória amparando-se no nome de seu mestre, lhe inflingiu
muitas injúrias. Finalmente, fez um pacote com o que lhe haviam enviado os
irmãos e partiu sem que ele o soubesse. Como não haverá outra ocasião para
falar de Adriano, quero dizer apenas isto para inspirar horror naqueles que
depreciam os seus mestres: pouco tempo depois, morreu acometido pela podridão
da lepra.
Um demônio em alto-mar. O ancião, tendo Zanano por companheiro, embarcou
em um navio que se dirigia para a Sicília. Tinha a intenção de pagar a viagem
vendendo um códice dos Evangelhos que transcrevera em sua juventude. Porém,
sucedeu que, no meio do mar Adriático, o filho do proprietário do navio,
possuído por um demônio, começou a gritar: “Hilarião, servo de Deus, por tua
culpa não estamos tranqüilos nem sequer em alto-mar. Dá-me tempo para chegar em
terra, de modo que não seja expulso daqui e me veja precipitado no abismo”.
Hilarião lhe respondeu: “Se meu Deus te concede permanecer, submeta-te; porém,
se te expulsa, por que o faria por mim, que sou um homem pecador e mendigo?”.
Dizia isto para que os navegantes e comerciantes que estavam na embarcação não
o dessem a conhecer quando chegassem em terra. Em seguida, o rapaz foi
purificado e tanto o pai como os presentes asseguraram a Hilarião que não
revelariam o seu nome a ninguém.
Hilarião, verdadeiro pobre. Quando entraram em Paquino, promontório da
Sicília, [Hilarião] ofereceu ao proprietário do navio o Evangelho, como preço
de sua viagem e de Zanano. Porém, aquele não quis aceitar, sobretudo vendo que
eles somente tinham aquele códice e a roupa que vestiam. Jurou que não
aceitaria. O ancião aceitou, com a consciência certa de que efetivamente era
pobre e se alegrava principalmente por isso, porque não tinha nenhum bem neste
mundo e era considerado como mendigo pelos habitantes do lugar.
Milagres na Sicília. Porém, logo, temendo que os comerciantes que vinham
do Oriente o dessem a conhecer, fugiu para o interior, isto é, a vinte milhas
do mar e, ali, em um campo solitário, recolhia todo dia um haz de lenha e o
colocava sobre o ombro de seu discípulo. Vendia a lenha na aldeia vizinha e
comprava alimento para ambos e um pouco de pão para os que vinham visitá-los.
Contudo, como é verdade o que está escrito: “Não pode permanecer oculta uma
cidade situada no alto de uma colina”, quando um soldado da guarda estava sendo
exorcizado na basílica de São Pedro, o espírito imundo que estava nele gritou:
“Há poucos dias, chegou na Sicília o servo de Cristo, Hilarião. Ninguém o
reconheceu e ele pensa que poderá permanecer oculto, mas eu irei para lá
desmascará-lo”. Imediatamente, tomou um navio no porto com seus servos e
desembarcou em Paquino. E guiado por seu demônio, foi prostrar-se diante da
choupana do ancião e foi imediatamente curado. Este foi o começo de seus
milagres na Sicília. Isto fez com que, em seguida, o procurassem uma
considerável multidão de enfermos e pessoas piedosas, entre eles um dos
cidadãos mais renomados, inchado pela hidropesia, que foi curado no mesmo dia
em que foi ver Hilarião; depois, lhe ofereceu uma grande quantidade de regalos,
mas escutou o que o Salvador havia dito aos seus discípulos: “De graça
recebestes, de graça dai”.
Hesíquio se reencontra con Hilarião. Embora ocorressem essas coisas na
Sicília, seu discípulo Hesíquio o procurava por todo o mundo, recorrendo às
costas, entrando nos desertos e possuindo apenas esta certeza: onde quer que
estivesse Hilarião, não permaneceria oculto por muito tempo. Três anos mais
tarde, em Metone, ouviu de um judeu que vendia objetos e roupas à população,
que na Sicília havia aparecido um profeta aos cristãos que operava tantos
milagres e prodígios como ocorria com os antigos santos. Hesíquio o interrogou acerca
de seu aspecto, seu modo de caminhar, sua linguagem e, sobretudo, sua idade,
mas não pôde constatar nada. O homem declarava que apenas sabia da fama desse
homem. Tendo entrado no Adriático, após uma rápida viagem, Hesíquio desembarcou
no Paquino e, ao pedir notícias sobre o ancião em uma aldeia situada na baía da
costa, se inteirou, pelas respostas unânimes de todos, onde estava e o que
fazia. O que mais admirava a todos era que depois de tão grandes prodígios e
milagres, nunca aceitara de nenhum dos habitantes desses lugares nem sequer um
pedaço de pão. E para não me estender em demasia, termino dizendo que aquele
santo homem Hesíquio se arremessou aos joelhos do seu mestre e lhe banhou os
pés com suas lágrimas, até que este, finalmente, o levantou. Depois de dois ou
três dias de colóquio, escutou dizer a Zanano que o ancião já não podia viver
nessas regiões e que queria ir para certas nações bárbaras, onde fossem
desconhecidos seu nome e sua fama.
Passagem pela Dalmácia. O conduziu, então, a Epidauro, cidade da
Dalmácia, onde permaneceu uns poucos dias em um campo que cerca a cidade;
porém, tampouco ali pôde permanecer oculto. Uma serpente imensa, que na região
é chamada de “boas” – porque é tão grande que pode comer um boi – devastava
toda a província e devorava não apenas o gado e as ovelhas, mas também aos
camponeses e pastores após privá-los, com sua força, da respiração. Hilarião
ordenou que preparassem uma fogueira para a serpente e, depois de chamá-la,
orou a Cristo. Então mandou que subisse no monte de lenha e o fogo a prendeu.
Assim, ante os olhos de todo o povo, queimou a enorme besta. Depois Hilarião
perguntou: “Que fazer? Para onde ir?”. E preparou outra fuga. Sonhava com
terras solitárias e se afligia ao ver seu silêncio traído por seus milagres
portentosos.
Um maremoto acalmado. Naquele tempo, em razão de um terremoto que
atingiu todo o mundo após a morte de Juliano, os mares saíram dos seus limites
e, como se Deus ameaçasse com um novo dilúvio e as coisas retornassem ao antigo
caos, os navios foram arrastados para os cumes das montanhas e ali ficaram
dependurados. Quando os habitantes de Epidauro viram as ondas ameaçadoras, o
corpo maciço de água e os imensos redemoinhos avançando até a costa, temerosos
de que a cidade fosse destruída até as bases – o que davam por certo – entraram
na morada do ancião e, como se partissem para uma batalha, o levaram até a
costa. Traçou três sinais da cruz sobre a areia e extendeu as mãos sobre as
ondas. Parecia incrível a que altura se inchara o mar e como se deteve perante
ele. Então, como se temesse um grande rato e como que indignado perante tal
obstáculo, o mar, pouco a pouco, retornou para o seu lugar. Os camponeses de
Epidauro e toda a região o celebram ainda hoje e as mães contam para seus
filhos, para que transmitam essa recordação aos seus descendentes. Na verdade,
o que se disse aos Apóstolos: “Se cressem, diriam a este monte: ‘atira-te ao
mar’, e assim se sucederia”, pode cumprir-se também literalmente se alguém
guarda a fé dos Apóstolos, tal como o Senhor ordenou. Que importa se é o monte
que desce ao mar ou que uma imensa montanha de água se endureça subitamente e
se mantenha firme diante dos pés do ancião, ainda que volte mansamente para
trás?
No Chipre. Toda a cidade estava admirada e o extraordinário milagre foi
divulgado também na Salona. Ao saber disso, o ancião fugiu ocultamente durante
a noite em uma pequena embarcação e, encontrando depois de dois dia um navio
cargueiro, se dirigiu para o Chipre. Entre Malea e Citera, uns piratas, deixando
na costa parte de seus navios, que não usavam velas mas remos, saíram ao
encontro [do cargueiro] em duas embarcações velozes e pequenas, e passaram a
golpear com os remos e agitar de um e outro lado. Os que estavam no no navio
começaram a tremer e chorar, correndo daqui e dali. Prepararam furos e, como se
um só não bastasse para dar a notícia, todos juntos anunciaram ao ancião a
presença dos piratas. Ele os viu de longe, sorriu e voltando-se para os seus
discípulos, lhes disse: “Homens de pouca fé, por que temem? Acaso esses são
mais numerosos que o exército do faraó? E, mesmo assim, todos foram submersos
quando Deus quis”. Enquanto Hilarião assim falava, as embarcações inimigas se
aproximavam, podendo-se já ver as caras exaltadas quase à distância de meio
tiro de pedra. Ele se pôs de pé na proa do navio e, com a mão estendida contra
os que se aproximavam, disse: “Basta terem chegado até aqui!” E coisa
maravilhosa e incrível! Imediatamente as embarcações retrocederam e tomaram a
direção oposta, mesmo com os remos se movimentando no sentido contrário. Os
piratas se maravilharam de retroceder contra a sua vontade e, por mais que se
empenhassem em atingir o navio [cargueiro], eram arrastados para a costa muito
mais velozmente que em direção ao navio.
Na cercania de Pafos. Omito todo o resto para que não pareça que quero
prolongar o livro narrando milagres. Apenas direi que, navegando com vento
favorável entre as Cícladas, ouviu de um e outro lado as vozes dos espíritos
imundos que gritavam a partir das cidades e aldeias, e que se reuniam na praia.
Pafos é uma cidade do Chipre famosa pelos cantos que lhe dedicaram os poetas.
Foi destruída mais de um vez por terremotos e, ainda hoje, com suas ruínas,
continua revelando o esplendor de outros tempos. Tendo entrado nela, Hilarião
habitava a duas milhas da cidade, sendo desconhecido de todos e feliz por poder
viver tranqüilo uns poucos de dias. Todavia, nem se passara vinte dias quando
todas as pessoas da ilha que possuíam espíritos imundos começaram a gritar,
dizendo que havia chegado Hilarião, o servo de Cristo, e que deviam acudir
depressa até ele. Esses gritos ressoavam em Salamina, em Curio, em Lapeta e em
todas as outras cidades. A maioria assegurava saber que se tratava de Hilarião
e que era verdadeiramente um servo de Deus, porém, ignorava onde estava. Uns
trinta dias depois, ou pouco mais, se reuniram em torno de si umas duzentas
pessoas, homens e mulheres. Ao vê-las, se contristeceu por que não o deixavam
tranqüilo e, por assim dizer, quis vingar-se um pouco sobre ele mesmo, e se
voltou com todo fervor sobre estas importunações com uma oração tão insistente
que alguns foram curados de imediato, outros depois de dois ou três dias, porém
todos em menos de uma semana.
Outra vez o deserto é invadido. Permaneceu ali dois anos, porém sempre
pensou em fugir. Enviou Hesíquio para a Palestina, para que saudasse aos irmãos
e visitasse as ruínas das celas, com ordem para que retornasse na primavera.
Quando regressasse, Hilarião queria navegar novamente até o Egito, isto é, para
aqueles lugares que chamavam Bucólia, porque ali não havia cristãos, mas apenas
um povo bárbaro e feroz. Porém, Hesíquio o persuadiu a que permanecesse na ilha
e que se retirasse para um lugar mais oculto. Quando depois de uma prolongada
busca encontrou [esse lugar], conduziu Hilarião a doze milhas do mar, adiante,
entre os montes solitários e ásperos, onde apenas se podia subir arrastando-se
sobre as mãos e os pés. Quando chegou ali, Hilarião contemplou esse lugar
verdadeiramente terrível e afastado, cercado de árvores por todas as partes.
Havia também águas que corriam a partir do cume, uma pradaria muito agradável e
muitas frutas, ainda que ele nunca tenha tomado esses frutos para sua
alimentação. Perto dali existia as ruínas de um antiquíssimo templo no qual,
como ele mesmo contava e testemunham seus discípulos, ressoava dia e noite as
vozes dos demônios, tão inumeráveis que se podia crer tratar-se de um exército.
Hilarião se alegrou muito porque tinha por perto inimigos contra quem lutar e
habitou ali durante cinco anos. Nesses seus últimos anos de vida, Hesíquio o
visitava com freqüência. Na última etapa, foi consolado ao ver que, em razão da
dificuldade do acesso ao seu refúgio e da quantidade de fantasmas, que eram
tema de muitas estórias, ninguém ou quase ninguém ousava chegar até ali. Um
dia, ao sair de seu pequeno jardim, viu um homem com o corpo todo paralisado,
que jazia perante a porta. Perguntou a Hesíquio quem era e como foi levado até
ali. Ele respondeu que era o procurador da aldeia, cujo território pertencia à
pradaria onde estavam. Hilarião, chorando e estendendo a mão sobre o homem que
jazia na terra, lhe disse: “A ti te digo: em nome do Senhor Jesus Cristo,
levanta-te e anda!”. E com admirável rapidez, enquanto as palavras ainda ressoavam
em sua boca, os membros já fortalecidos levantaram o homem e o puseram em pé.
Quando este milagre se tornou conhecido, a necessidade de muitos venceu a
dificuldade do lugar e a subida sem caminhos. Todas as aldeias circunvizinhas
somente pensavam em impedir que Hilarião escapasse, porque se divulgou o rumor
de que ele não podia permanecer muito tempo no mesmo lugar. E isto não fazia
por prontidão ou por sentimento pueril, mas para fugir da honra e do
oportunismo dos homens, pois ele desejava sempre o silêncio e a vida oculta.
Últimos desejos. Quando tinha oitenta anos, estando ausente Hesíquio,
lhe escreveu de próprio punho uma breve carta na forma de testamento,
deixando-lhe todas as suas riquezas, a saber: o Evangelho, a túnica de saco, o
capuz e o seu pobre manto. O irmão que o servia tinha falecido há pouco tempo.
Muitos homens piedosos vieram de Pafos para ver Hilarião, que se encontrava
doente, especialmente porque tinham ouvido dizer que afirmara estar pronto para
ver o Senhor e seria libertado das cadeias do corpo. Veio também Constança, uma
santa mulher a cujo genro e filha havia livrado da morte com a unção do óleo.
Hilarião conjurou a todos para que não conservassem o seu corpo em momento
algum após sua morte, mas que fosse enterrado nessa mesma pradaria, tal como
estava vestido, com a túnica de pele, o capuz e o manto tosco.
Morte de Hilarião. Já ia se esfriando o calor do seu peito e não caía
nada nele exceto a lucidez da alma. Com os olhos abertos, dizia: “Graça, que
temes? Graça, alma minha, por que duvidas? Durante quase setenta anos serviste
a Cristo e agora temes a morte?”. Com estas palavras, exalou seu último
suspiro. Imediatamente foi enterrado e assim, na cidade, foi anunciada
primeiramente sua sepultura e depois sua morte.
Traslado para a Palestina. Pouco depois do enterro, Hesíquio, que estava
na Palestina, partiu para o Chipre. Fingiu querer permanecer nesse mesmo jardim
para dissipar toda suspeita dos habitantes do lugar, que montavam guarda
cuidadosamente. Assim, após dez meses, com grande perigo para sua vida,
conseguiu retirar o corpo de Hilarião e o levou para Maiuma, acompanhado por
todos os monges e multidões que vieram das cidades, e o sepultou na sua antiga
cela. Tinha a túnica, o capuz e o manto intactos, bem como todo o corpo, que
parecia ainda estar vivo, e exalava tão fragrante perfume que podia-se crer ter
sido banhado em ungüentos.
O
culto do santo. Chegando ao final deste livro, creio que não posso calar a
devoção de Constança, aquela santíssima mulher: logo que chegou a notícia de
que o corpo de Hilarião se encontrava na Palestina, morreu repentinamente,
atestando, também, com sua morte, seu verdadeiro amor pelo servo de Deus. Tinha
o costume de passar a noite velando em seu sepulcro e, como se estivesse ali
presente, pedia a ele para que a ajudasse através de sua intercessão.
Ainda hoje se pode ver a grande contenda que existe entre os palestinos e os
cipriotas, uns porque têm o corpo de Hilarião, os outros porque têm seu
espírito. Contudo, em ambos os lugares ocorrem diariamente grandes milagres,
sobretudo no horto de Chipre, talvez porque ele amou mais esse lugar.
* * *
Fonte: Veritatis Splendor (http://www.veritatis.com.br)
Tradução: Carlos Martins Nabeto
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