Quando Jesus anunciou o mistério da Eucaristia, dizendo que daria seu corpo e seu sangue como alimentos de vida eterna, muitos dos seus discípulos - diz o texto bíblico - deixaram de andar com ele. Jesus se dirige aos Doze Apóstolos e pergunta: "Também vós quereis ir"? Pedro respondeu: "Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna. Tu és o Santo de Deus" (Jo 6, 67-69).
Acostumados a uma tradição onde tudo era tratado de modo ritual severo, não conseguiram compreender as palavras de Jesus. O escândalo que se produziu na mente daqueles que abandonaram o Senhor é fácil de entender. Fiéis às tradições do Antigo Testamento e aos ensinamentos dos fariseus, aqueles discípulos não conseguiram dar um passo tão gigante da passagem fundamental da antiga para a nova Aliança.
Na tradição antiga, o sangue era considerado veículo da vida (Lv 17, 11.14), elemento vital e, por isso, perder sangue é perder a vida, dar sangue, é dar a vida. Uma série de prescrições rituais e morais tiveram seu fundamento nessa realidade.
Se, por um lado o sangue devia ser absolutamente evitado no preparo dos alimentos, por outro lado, era essencial em alguns ritos, como a aspersão para significar a purificação (Lv 14), para selar um pacto, marcando os umbrais das casas dos Hebreus no Egito: significou a proteção contra o anjo exterminador (Ex 12).
Essas imagens eram prefigurações do que seria realizado em Cristo e por Cristo. Ele promete dar seu sangue para nos comunicar a vida eterna (Jo 6, 54-57).
Origina-se dessas palavras a grande crise no discipulado de Jesus. Quando o evangelista diz, que muitos deixaram de seguí-lo, somente Pedro se adianta e consegue dar o salto qualitativo da fé. Embora fosse um homem rude, Pedro, movido pelo Espírito, entende as palavras do Senhor como palavras de vida eterna. Antecipa-se aos demais e professa, por primeiro, sua fé. "A quem iremos, Senhor" soa quase como um lamento. O Senhor preparava, assim, seu vigário na terra para as mais duras provas e situações.
Na última ceia, Jesus inclina-se diante dele e de todos os demais apóstolos para lavar-lhe os pés. E, momentos depois, partilha seu maior dom: "Este é o sangue da Aliança que é derramado por muitos para a remissão dos pecados (Mt 26,28)". É a clara alusão ao sangue que versaria na cruz, para cumprir a obra da redenção. O próprio Judas, sentindo remorsos por ter entregue o Senhor, devolve as trinta moedas de prata, dizendo: "Pequei, entregando um sangue inocente (Mt 27,4)".
Jesus derrama todo o seu sangue por amor aos homens. As últimas gotas de seu sangue já estão misturadas com líquido pleural quando "um soldado lhe transpassou o lado com a lança e, imediatamente, saiu sangue e água" (Jo 19, 33). Fecha-se assim o grande horizonte da total doação de seu preciosíssimo sangue: em Caná, Jesus transforma a água em vinho; na ceia, o vinho em sangue e na cruz, de seu Coração aberto, emana sangue e água, "rios de água viva" ( Jo 7, 38).
O preciosíssimo sangue de Cristo, dava início em julho, a uma festa litúrgica dedicada a este tema que, posteriormente, foi unida à festa de Corpus Christi. Adentramos o mistério do sangue de Cristo, o grande mistério: versa as primeiras gotas de sangue no dia da circuncisão, corre por terra na agonia do horto das oliveiras, mana abundantemente durante a cruel flagelação, cobre-lhe o rosto na coroação de espinhos, marca as pegadas do caminho do Calvário, escorre em borbotões na hora da crucifixão, goteja por terra até à morte de Jesus. Isaías, no quarto canto do servo sofredor (Is 52) o descreve "tão desfigurado que nem parecia um homem". E, no dizer do mesmo profeta, "por suas feridas, fomos curados" (Is 53,5). Em outra passagem, Isaías mostra a figura de um homem, pisando as uvas no lagar e, manchando toda sua roupa. Ele pergunta: "Por que está vermelho o traje, e as tuas vestes, como as daquele que pisam uvas no lagar? O lagar, eu o pisei sozinho, e dos povos nenhum homem se achava comigo; pisei as uvas na minha ira; no meu furor, as esmaguei, e o seu sangue me salpicou as vestes e me manchou o traje todo. Porque o dia da vingança me estava no coração, e o ano dos meus redimidos é chegado" (Is 63,2-4).
O preciosíssimo sangue de Cristo é o alimento dos fortes. Ele se nos dá, com o seu Corpo, na Eucaristia. Fortalece a todos para serem cada vez mais dignos das promessas do Senhor e serem no mundo sinal e presença de seu amor e de sua misericórdia. Garantirá a todos os cristãos o necessário para a santidade; é a fortaleza dos mártires, a virtude dos confessores, a força dos tentados, consolação dos que choram, esperança dos penitentes e conforto dos moribundos.
O livro do Apocalipse (Ap 7) mostra uma grande multidão daqueles que vinham da grande tribulação: "Lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro". A grande tribulação é o tempo de perseguição, quando, os primeiros cristãos tiveram a oportunidade de testemunhar sua fé diante de reis e povos. Quanto mais perseguida, tanto mais crescia em número e em santidade a Igreja, Corpo de Cristo. Era o sangue de Cristo a solidificar a Igreja.
No Apocalipse, Nero é o protótipo do perseguidor, mas sabemos que hoje há muitas outras possibilidades de se dar testemunho de Cristo e encontrar o martírio, como forma mais excelente de se consumar uma vida autenticamente cristã.
Com certeza, neste início de século, a Igreja passará pelas mesmas perseguições a que já está acostumada. Ela continuará sendo alvo de críticas, de incompreensões e enfrentará o martírio da Cruz. Pela força da Eucaristia e pelos méritos do Preciosíssimo Sangue de Jesus, ela vencerá. Serão momentos de purificação, de santificação e, até mesmo, de glorificação de tantos de seus membros. Santo algum galgou a glória dos altares sem sofrimento. Eles continuam a nos inspirar os melhores propósitos para realizar, em nossa vida diária, tudo aquilo que proclamamos pela fé. O desejo de entregar o próprio corpo em testemunho da fé em Cristo, é o desejo de todo cristão, notadamente, daqueles que recebemos, no dia da sua Crisma, os dons do Espírito Santo. Precisamos de Santos. Que o Senhor inspire a nossa juventude o propósito de ser, na Igreja, referencial de tão sublime desejo. O precioso Sangue de Cristo há de nos fortalecer e inspirar... O dom da Fortaleza nos transformará em discípulos ardorosos e valentes!
D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID
Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Fonte: Arquidiocese do Rio de Janeiro
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